A Câmara dos Deputados deu mais uma demonstração na semana passada da falta de pudor quando tem de legislar em causa própria ou na defesa dos interesses financeiros de seus principais partidos. O acinte da vez foi a aprovação da chamada PEC da Anistia, tornando sem efeito parte de leis votadas pelo próprio Congresso voltadas a aperfeiçoar normas eleitorais e de prestação de contas. Trata-se de um retrocesso, contrário à moralidade e aos anseios dos eleitores. Aguarda-se que o Senado barre esta tentativa indecorosa.
Se os senadores auscultarem os eleitores e lembrarem o que a sociedade espera de seus representantes, dirão não a essa excrescência
Pelo texto aprovado, restará inscrito na Constituição que os partidos ficam livres de multas ou da suspensão de acesso aos fundos partidário e eleitoral por irregularidades detectadas nas prestações de contas anteriores à promulgação da PEC. Dívidas podem ser generosamente refinanciadas, também com a isenção de juros. As siglas ganham ainda a possibilidade de utilizar verba do fundo partidário para quitar pendências. Algumas poderão ser parceladas em até 180 meses, prazo para lá de camarada. A desfaçatez não para por aí. Abre caminho para a anulação de sanções de natureza tributária aplicadas aos partidos, incluindo as oriundas de processos administrativos e judiciais já transitados em julgado.
Em outro ponto, a PEC promove uma involução na busca meritória de tornar os legislativos mais à semelhança do perfil da população brasileira. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os recursos destinados pelos partidos aos candidatos negros deveriam ser proporcionais ao número de postulantes. No último pleito, em 2022, esse percentual foi de 50%, mas as verbas alcançadas a essas candidaturas chegaram a 30%. A PEC não apenas reduz a destinação futura a 30%, como estipula que não haverá punição para a burla na eleição anterior caso o montante que deixou de ser aplicado seja distribuído ao longo das disputas de 2026 a 2032.
Deve ser lembrado que, caso prospere, essa será a quarta anistia do gênero para os partidos políticos. Não haverá nenhuma surpresa, portanto, se os novos compromissos forem descumpridos ou solenemente ignorados e a solução encontrada pelo Congresso for um novo autoperdão.
A PEC da Anistia, como em outras matérias com objetivos corporativos semelhantes, conseguiu até unir adversários ferrenhos. O PT de Luiz Inácio Lula da Silva e o PL de Jair Bolsonaro ajudaram a formar a ampla maioria de 338 votos que aprovou a emenda à Constituição. O centrão, sem surpresas, embarcou unânime na tarefa de erigir mais um monumento legislativo à impunidade. Somente 83 deputados federais, do Novo e do bloco Psol-Rede, votaram contra.
Apesar da pressão de dirigentes partidários, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que não aceleraria a tramitação da PEC, como ocorreu na Câmara. A conferir. Existe um movimento para o texto ser analisado hoje na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa. Se os senadores auscultarem os eleitores e lembrarem o que a sociedade espera de seus representantes, dirão não a essa excrescência.