A sobrevivência de uma democracia está em perigo quando existe a desconfiança prévia de parcela significativa da sociedade na Justiça. O Brasil atravessa esse momento tormentoso. As instituições do sistema judicial do país têm à frente um desafio histórico e devem estar à altura da ocasião para dissipar a névoa de descrença. A tarefa é demonstrar de forma categórica aos cidadãos que podem confiar na capacidade do Estado de fazer justiça com independência e subserviência apenas ao império da lei, observação de limites e autocorreção. Está em jogo a solidez de um dos pilares do contrato social e, portanto, da própria República.
A descredibilização da Justiça cria o risco de uma instabilidade institucional capaz de abrir novas brechas para apetites autocráticos
A Operação Tempus Veritatis, deflagrada no último dia 8 de fevereiro pela Polícia Federal (PF), trouxe novas evidências que podem implicar o ex-presidente Jair Bolsonaro e membros de seu governo em uma trama para executar um golpe de Estado no país. Seria uma acusação gravíssima em qualquer tempo e contra qualquer figura pública. Mas o caso específico é investido de mais significados por envolver um líder político protagonista de uma polarização que talvez não tenha precedentes na história nacional.
A grande tarefa das instituições envolvidas, que poderão ser chamadas outra vez a se manifestar, como a própria PF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo Tribunal Federal (STF), é a de conduzir as suas atribuições de forma técnica, independente, isenta e de acordo com a lei. Até aqui, na situação pontual da Tempus Veritatis, seguem-se à risca os princípios formais. A PF fez as investigações e pediu para agir, a PGR assentiu e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou as medidas.
Para as futuras etapas do percurso legal aguarda-se igual rigor. A PF poderá decidir ou não por indiciamentos, baseada no conjunto de provas que reunir. O mesmo é esperado quando a PGR for instada a se posicionar acerca dos fatos apurados. Da mesma forma deve ser no momento posterior, ao chegar a vez de o STF apreciar o entendimento da Procuradoria, com a eventual abertura de processos criminais caso a denúncia seja aceita contra o cidadão tornado réu.
Ao longo de seu trajeto, o sistema processual penal brasileiro dispõe de mecanismos, fases e recursos para que eventuais equívocos possam ser corrigidos à luz de novos fatos trazidos à tona e pela revisão de teses relativas à interpretação das leis e da Constituição. Isso é salutar. Ao cabo, colabora para que se faça justiça – ou que chegue a “hora da verdade”, tradução do latim do nome da operação da PF.
Algumas das premissas para o respeito ao devido processo legal são o amplo direito à defesa e a presunção de inocência. Outras condições são que os agentes do Estado encarregados das investigações, da acusação e do julgamento atuem de acordo com os ditames legais, de forma independente e apegados apenas aos fatos. Isso se torna ainda mais relevante pela constatação de que o atual PGR foi indicado pelo grande antagonista de Bolsonaro e alguns ministros do STF são percebidos por parcela da sociedade como parte da polarização. Essa percepção de contaminação política deve ser demonstrada incorreta pelos próprios apontados, com posicionamentos sóbrios e alicerçados somente na legislação e nos elementos probatórios produzidos nos autos.
O desafio, portanto, é ao fim chegar a uma decisão que, seja qual for, não deixe margem de contestações e alegações de perseguição, erro processual ou condescendência. Esse é o desfecho a ser perseguido. Será vital para a credibilidade da Justiça brasileira e, por conseguinte, para a longevidade da jovem democracia do país. Um dos três poderes da República, o Judiciário é peça essencial no equilíbrio de forças que compõem o sistema de freios e contrapesos da democracia. A descredibilização da Justiça cria o risco de uma instabilidade institucional capaz de abrir novas brechas para apetites autocráticos.