Existem dois aspectos que precisam ser analisados separadamente sobre o episódio da recepção calorosa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao autocrata venezuelano Nicolás Maduro. Em primeiro lugar, há um acerto na busca por reatar as relações diplomáticas com o país vizinho. A linha histórica da política externa brasileira é guiada pelo pragmatismo. Pelas mais diferentes razões, líderes democráticos de todo o mundo estão a todo momento posando sorridentes para fotos protocolares com ditadores. É apropriado ainda fortalecer laços comerciais e, inclusive, usar essa reaproximação para renegociar o pagamento dos cerca de US$ 1,2 bilhão que a Venezuela deve ao Brasil.
São inúmeros os relatos testemunhais e apurações de organismos internacionais que mostram arbitrariedades na Venezuela
Chocaram, no entanto, as mesuras de Lula a Maduro e o esforço para mascarar a realidade. Em seu pronunciamento ao receber o venezuelano, o presidente brasileiro tratou como “narrativas” as fartas e embasadas denúncias contra o regime ditatorial iniciado por Hugo Chávez e mantido por seu sucessor. Para Lula, seriam apenas versões de que na Venezuela existiria “antidemocracia e autoritarismo”.
São inúmeros os relatos testemunhais e apurações de organismos internacionais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch que mostram arbitrariedades na Venezuela, com perseguições e prisões a adversários políticos, execuções extrajudiciais, eleições sob suspeita e inexistência de liberdade de imprensa. Acrescente-se a isso uma gestão ruinosa, que legou a destruição da economia, a disparada da pobreza, a hiperinflação e uma enorme crise de refugiados. Em setembro do ano passado, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU apontou uma série de potenciais crimes contra a humanidade cometidos pelo governo venezuelano, com torturas, estupros e repressão a dissidentes. Em abril, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) que investiga o caso também apresentou conclusões de uma apuração confirmando a estratégia de repressão violenta.
A autocracia venezuelana, a exemplo de outros países, consolidou-se com a captura das instituições, como o parlamento, o judiciário e as forças armadas. Note-se que um dos principais motes da campanha eleitoral de Lula, no ano passado, foi justamente a defesa da democracia – regime soterrado no país vizinho. O petista foi a escolha de um número significativo de eleitores e angariou apoio de lideranças políticas de outras correntes não pela simpatia ao PT, mas pelo receio de que o Brasil caminhasse para algo ao menos parecido em termos de erosão institucional. Os episódios de 8 de janeiro mostram que os temores não eram mera alucinação.
Tudo isso deveria fazer o presidente brasileiro ter ao menos certo recato ao se encontrar com autocratas, sem respaldá-los. Ao tratar os fatos que mostram a opressão na Venezuela como uma “narrativa”, frustra a parcela da sociedade que, acima de preferências ideológicas, defende a democracia. Ditadura é ditadura, seja de esquerda ou de direita. Lula, no entanto, segue com extrema dificuldade de encarar a realidade em situações como a repressão na Nicarágua e a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Como dito antes, é salutar o Brasil buscar normalizar as relações com a Venezuela. Assim como deve tê-las com a China e a Arábia Saudita, sem significar chancela a seus regimes, que esmagam liberdades individuais. Trata-se de pragmatismo, o mesmo adotado pela Casa Branca ao fazer acenos a Caracas no ano passado, no contexto da guerra no Leste Europeu, quando os EUA tinham preocupação com o mercado do petróleo. Bem diferente, no entanto, é ser quase reverencial com um autocrata acusado de crimes contra a humanidade e tratar uma repressão brutal como um ponto de vista.