Ponto importante do pacote de ações jurídicas prometido pelo ministro Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) como resposta aos ataques golpistas de 8 de janeiro, a regulamentação das redes sociais é uma medida tão polêmica que, até agora, nem mesmo países mais desenvolvidos conseguiram implementá-la de forma satisfatória. Mas também é, inquestionavelmente, um desafio que precisa ser enfrentado com urgência pelas autoridades brasileiras, considerando-se os riscos que a divulgação de conteúdos falsos e mal-intencionados representa para o país e para a própria democracia. A ampla difusão de mentiras pelas plataformas digitais vem respaldando iniciativas autoritárias, minando a legitimidade de instituições democráticas e servindo de suporte para manifestações violentas como a recente depredação de prédios públicos na Capital Federal.
O que o Estado e a sociedade podem fazer, de acordo com a legislação constitucional, é responsabilizar posteriormente os infratores
É oportuno, portanto, que o governo enfrente a questão, mas com total observância das garantias constitucionais. Em primeiro lugar, não cabe ao Executivo assumir sozinho o papel de tutor das liberdades individuais. O pacote anunciado pelo ministro da Justiça precisa ser encaminhado ao Congresso e receber aprovação parlamentar para que as medidas sugeridas sejam colocadas em prática de acordo com a legislação vigente, com amplo direito de defesa aos acusados e recursos a todas as instâncias judiciárias cabíveis. Não pode sobrar qualquer margem para a censura prévia, que é expressamente vedada pela Constituição do país.
Pelo que foi até agora noticiado, a intenção do governo é exigir das plataformas tecnológicas o que o ministro chamou de “dever de cuidado”, compromisso pelo qual as empresas terão de apresentar relatórios periódicos de transparência detalhando como removeram ou reduziram o alcance de conteúdos ilegais. Por ilegalidade, ainda na visão oficial, entende-se informações e opiniões que violem a lei, atentem contra a democracia, estimulem a violência ou incitem animosidade entre os poderes constituídos e as Forças Armadas.
Na teoria, parece simples. Na prática, porém, esse mecanismo de controle pode interferir na liberdade de expressão, uma vez que pessoas e organizações só podem ser responsabilizadas a posteriori – nunca pela suposição de que irão cometer infrações. No ambiente anárquico das redes sociais, não há como evitar a publicação de conteúdos perniciosos, assim como ninguém pode ser impedido de ir para a rua e proferir imprecações. O que o Estado e a sociedade podem fazer, de acordo com a legislação constitucional, é responsabilizar posteriormente os infratores identificados e julgados. As punições mais rigorosas que estão sendo propostas se justificam nos casos de reiteração ou resistência para a remoção das ilegalidades.
Resguardado o aspecto de que uma ação forte no ambiente digital não pode se confundir com censura, vale reforçar que esta ação é urgente em favor da democracia. Esta visão é confirmada pelas palavras do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. “Ao usar algoritmos que amplificam o ódio para manter os usuários grudados em suas telas, as plataformas de rede social são cúmplices. Assim como os anunciantes que subsidiam esse modelo de negócios”, afirmou o dirigente na última sexta-feira, em evento que marcou o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.