Apenas a dor e a saudade são maiores do que a frustração por ainda não ter sido feita justiça no caso Kiss. A anulação, em agosto do ano passado, do júri realizado no final de 2021, por filigranas legais, a despeito de provas e testemunhos robustos, torna a passagem dos 10 anos da tragédia ainda mais penosa para familiares e amigos das 242 vítimas fatais do incêndio da boate e para os 636 feridos que sobreviveram ao desastre causado pela irresponsabilidade e pela ganância. Mais do que tragédia, foi um crime que ainda permanece impune.
Não se pode exigir dos que vivem o martírio da espera por justiça a resignação com tanta demora
Por isso, em consideração à memória dos jovens mortos no incêndio em Santa Maria, a sociedade exige que as instituições e seus representantes investidos da delegação de zelar pela função jurisdicional do Estado ofereçam da forma mais célere possível uma resposta definitiva para quem perdeu pessoas queridas na noite do dia 27 de janeiro de 2013. O sistema processual brasileiro é conhecido pela profusão de recursos e pela excessiva tolerância em relação às chamadas manobras protelatórias. Mas, ainda que possam existir justificativas técnicas para a invalidação do mais longo júri da história do Rio Grande do Sul, não se pode exigir dos que vivem o martírio da espera por justiça a resignação com tanta demora pela definição das responsabilidades e penalizações.
É mesmo difícil de entender – e de aceitar – tanta incoerência. Basta lembrar que os quatro réus, ao final dos 10 exaustivos dias de julgamento em dezembro de 2021, foram condenados por homicídio, com dolo eventual, com sentenças de 18 anos e de 22 anos e seis meses de prisão, em regime fechado. E hoje aguardam em liberdade a programação de um novo júri ou, outra possibilidade, a reversão da anulação de agosto do ano passado pelas cortes superiores. Não há qualquer previsão de prazo para o final do triste episódio. Nenhuma decisão judicial vai extinguir a dor e a saudade dos familiares e amigos das vítimas. Mas é obrigação do Judiciário garantir um desfecho que pelo menos atenue a sensação de impunidade e permita aos que ficaram dar seguimento às suas vidas sem essa pendência.
Também no aspecto preventivo, houve um lamentável revés. A análise dos erros, omissões e negligências geradores da tragédia resultou, ainda em 2013, na aprovação da Lei Kiss pela Assembleia Legislativa do Estado, com o propósito de tornar mais rígidas as normas de segurança e prevenção de sinistros. Ao longo dos anos, porém, a legislação foi sendo flexibilizada, sob o pretexto de facilitar a operação de novos empreendimentos em edificações consideradas de menor risco. Por fim, em novembro do ano passado, o parlamento gaúcho aprovou um projeto, sugerido pelo Conselho de Desburocratização do Estado, dispensando 991 diferentes tipos de empresa do alvará de incêndio emitido pelo Corpo de Bombeiros.
Santa Maria ainda não se transformou num grande centro nacional de referência para a prevenção de tragédias urbanas, como seria desejável para homenagear as vidas jovens interrompidas com ações humanitárias. Mas vem avançando nesse sentido, com a luta incansável da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) contra a impunidade, com o trabalho reconhecido do Centro Integrado de Atendimento às Vitimas de Acidentes (Ciava) na reabilitação de sobreviventes de catástrofes em todo o país, e, principalmente, com a solidariedade e a obstinação de todos os gaúchos e brasileiros que clamam por justiça.