Não é razoável que a insegurança em relação a detalhes operacionais e dúvidas jurídicas ainda travem a doação de alimentos que sobram em restaurantes. É o que vem acontecendo em Porto Alegre. A prefeitura da Capital editou há pouco mais de duas semanas decreto para regulamentar a iniciativa, mas empresários ainda relatam ter questionamentos sobre procedimentos como o transporte da comida que é preparada nas cozinhas mas não é servida e poderia ajudar a aplacar a fome da população carente.
Não é admissível que uma grande quantidade de comida pronta continue sendo jogada fora todos os dias enquanto a fome grassa nas ruas e periferias
Sabe-se que, após o decreto, que veio depois de um projeto de lei no mesmo sentido aprovado na Câmara de Vereadores, ao menos 15 entidades demonstraram interesse em receber as doações e se cadastraram na Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). Nenhum restaurante, no entanto, formalizou adesão à iniciativa, a despeito da intenção já revelada pelo setor de colaborar. Pesam receios como a possibilidade de serem responsabilizados em caso de algum episódio de intoxicação alimentar. O texto, no entanto, aponta que só haveria algum risco de punição em caso de dolo, o que já foi corroborado até pelo Ministério Público. Há uma lei federal no mesmo sentido sancionada em junho de 2020. Essa legislação nacional ainda contempla regras para a doação de alimentos industrializados e in natura. As contribuições vêm ocorrendo desde o ano passado, mas, mesmo assim, em quantidades muito abaixo do potencial e da necessidade.
Não apenas em Porto Alegre, mas em todas as cidades médias e grandes do país, a pobreza tem crescido a olhos vistos. Basta circular pelas ruas para perceber o aumento do número de pedintes. Estima-se que existam quase 20 milhões de brasileiros enfrentando hoje um quadro de insegurança alimentar grave. O Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável calcula que o número de gaúchos hoje abaixo da linha de pobreza chega a 1 milhão. Em recente reportagem publicada em Zero Hora, o secretário de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Léo Voigt, revelou que, no final do ano passado, a prefeitura entregava 900 cestas básicas por mês. Atualmente são cerca de 10 mil e a demanda seria bem maior.
É preciso, portanto, que todos os atores envolvidos retomem o diálogo para que as dúvidas sejam sanadas de maneira satisfatória e as doações possam finalmente fluir com segurança. E, assim, não restem lacunas sobre pontos como acondicionamento, temperaturas e transporte das refeições. Todas os receios que levam a hesitações precisam ser dirimidos. Se há uma legislação que ampara, um decreto que normatiza as doações e existe ampla disposição dos empresários em colaborar, não é admissível que uma grande quantidade de comida pronta continue sendo jogada fora todos os dias enquanto a fome grassa nas ruas e periferias.
A chegada da pandemia criou correntes de solidariedade e uma grande mobilização para a doação de alimentos. Mas é preciso lembrar que, devido à crise, muitas famílias sequer têm dinheiro para comprar o gás necessário à preparação e, por isso, a comida pronta dos restaurantes é uma opção que não pode ser desperdiçada para combater a fome.
Se foi possível obter melhores indicadores na área, com impacto na vida real, é preciso acreditar que se possa também melhorar o desempenho na educação e na saúde