Beira o surreal a discrepância entre os números de contágios pelo novo coronavírus em Porto Alegre contabilizados de um lado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e, de outro, pelo Estado e pelo governo federal. Reportagem publicada no fim de semana em Zero Hora revelou um descompasso inaceitável. Mostrou que, enquanto a prefeitura registrava, até o final da semana passada, 25,5 mil casos, os sistemas utilizados pelo governo gaúcho e a União apuravam apenas 14,7 mil notificações, com um sumiço intrigante de 10,7 mil infectados.
Não é possível elaborar planos sólidos de enfrentamento à covid-19 se as avaliações forem feitas sobre números inconfiáveis
Mesmo que exista explicação, ela é inadmissível. A razão é uma falha na integração entre os sistemas de notificação utilizados pela SMS e pelo Ministério da Saúde. É um problema que persiste sem solução pelo menos desde maio. Apesar de a falha não ser nova, o erro não é sanado e quem for procurar os dados de Porto Alegre pode encontrar situações completamente distintas, dependendo da fonte.
É inconcebível que, no auge da grande crise sanitária em um século, não seja corrigido rapidamente um defeito na alimentação dos sistemas, o que gera interferências na busca pelo diagnóstico correto do quadro e por estratégias para mitigar e combater a pandemia na Capital. Mas agora, mais do que buscar culpados ou explicações para um problema básico mas essencial como é o manejo correto de estatísticas, os esforços devem ser centrados na correção das informações, o quanto antes. Não é possível elaborar planos sólidos de enfrentamento à covid-19 se a ineficiência da burocracia estatal fizer com que as avaliações sejam feitas sobre números inconfiáveis e mais do que imprecisos.
Sabe-se que a subnotificação no Brasil é gigantesca pela baixa testagem em comparação a outros países. Se a essa falha forem somados casos confirmados mas que não chegam ao banco de dados do Ministério da Saúde, instituição que deveria ter uma visão o mais correta possível do cenário nacional, o panorama fica ainda mais assustador e mostra o quanto se está no escuro. Estatísticas corretas são essenciais para a devida calibragem das ações relacionadas à circulação de pessoas e liberação de atividades. Falhas, inevitavelmente, vão gerar incertezas e desconfiança em relação às medidas que, ao fim, podem se mostrar desastradas. Também acabam levando a comparações incorretas com outras capitais, a erros em análises e em cálculos, como o de letalidade, e criam dúvidas adicionais se não seria um problema repetido em outras cidades, implicando distorções ainda maiores entre os números consolidados e a realidade.
Em uma analogia possível com a área da segurança, é impraticável ter um bom planejamento de combate ao crime se autoridades desconhecerem dados corretos sobre a quantidade de delitos e atos de violência, onde ocorrem e quando. Bases de dados confiáveis, da mesma forma, são o pilar de qualquer organização de enfrentamento de doenças. Constatar uma falha tão gritante na comunicação entre os sistemas que tabulam os casos de coronavírus só reforça a sensação de que os governos, sobretudo o federal, permanecem perdidos em meio à maior emergência de saúde enfrentada pela humanidade em várias gerações.