A transfiguração do presidente Jair Bolsonaro em um líder ponderado e moderado, como o que apareceu em rede nacional de TV na noite de terça-feira, não resistiu a um dia de realidade. A imagem de governante capaz de unir o país para vencer uma guerra epidêmica se esfarelou na primeira entrevista de Bolsonaro pós-moderação de tom. Ao ser questionado na Rádio Jovem Pan na noite de quinta-feira, o chefe da nação partiu para o confronto de sempre, mas com um agravante: praticamente desautorizou a gestão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na condução do combate ao coronavírus.
Uma das raras boas novidades surgidas no governo em razão da eclosão da pandemia, Mandetta só não foi demitido ainda porque se transformou em uma figura popular, ainda que a máquina de propaganda do Planalto tente agora ofuscar a luz própria conquistada pelo ministro ao mimetizá-lo com outros colegas de Esplanada nas entrevistas diárias. Era de fato previsível que, para um presidente errático diante da crise e única voz dissonante sobre as medidas de contenção entre os países membros do G20, os elogios ao ministro e as comparações de postura desembocariam em sabotagem aos esforços de Mandetta e equipe.
Bolsonaro passa a crer cada vez mais em seguidores radicais e a confundir o povo com o grupo de fanáticos apoiadores
A questão de fundo, porém, não é mais a permanência ou não do ministro, que seguirá no governo na melhor das hipóteses até a pandemia ser controlada. Os problemas mais agudos são o grau de desacerto interno do governo em um momento crítico da História, e o fato de o país depender do tênue fio de ligação com a sensatez de ministros para não vir à mente as cenas de corpos depositados nas calçadas, como as registradas durante a semana em Guayaquil, no Equador. A responsabilidade por essa situação de desintegração, inusitada no Brasil em tempos de emergência, cabe unicamente a Bolsonaro, um político que tem suas carreiras militar e eleitoral sob inspiração do confronto – nunca na comunhão de esforços tão necessária no momento.
Como todos os governantes que vão se vendo isolados, o presidente passa a crer cada vez mais em seguidores radicais e a confundir o povo com o grupo de fanáticos apoiadores que, cuidadosamente selecionados e filtrados por sua assessoria, são colocados à saída do Palácio da Alvorada todas as manhãs. No ritual, em que se misturam rezas, louvações ao presidente, ataques à imprensa e conclamações variadas, monta-se diariamente a pantomima que alimenta as redes sociais do clã Bolsonaro. Neste aspecto, o presidente se move na direção de seu colega de tuítes apagados Nicolás Maduro, que vislumbra nas boinas vermelhas bolivarianas que o cercam a única representação do povo venezuelano – todos os demais são inimigos a serem combatidos.
Felizmente, porém, e apenas graças a suas instituições democráticas sólidas e sensatas, o Brasil está muito distante da tragédia social e política do vizinho ao Norte ou da conversão para o desprezo à democracia na Hungria de Viktor Orbán, um representante do arco político do qual Bolsonaro faz parte. Ainda assim, é preciso que as instituições se mantenham alerta. O vírus, como se vê, também demonstra poder de corrosão da racionalidade, do bom senso e de instrumentos que asseguram a democracia.