O Brasil mal começou a vivenciar as agruras do primeiro round da maior crise da história recente mundial e já sofreu um duro golpe: a tentativa tacanha de ideologizar o combate ao coronavírus. Diante da compreensível angústia pela queda abrupta de renda e receita de trabalhadores avulsos e empresas de todos os portes, a inquietação com as normas para o isolamento passaram a ser instrumentalizadas politicamente, em uma divisão artificial e irreal entre aqueles que defendem as vidas em primeiro lugar e aqueles que não suportam mais as consequências das restrições à economia.
Infelizmente, a divisão que tomou forma no Brasil tem origem naquele que deveria ser o primeiro responsável por unir a Nação em um momento de emergência
Na prática, o abismo que se forma no país, com indisfarçável apoio do Palácio do Planalto, põe perigosamente, de um lado, os que acreditam no potencial letal do vírus para os seres humanos e à economia por um tempo ainda maior do que o período de restrições e, de outro, aqueles alinhados a correntes que desdenham dos efeitos do vírus na maioria da população e acreditam que o desemprego produzirá mais vítimas que a doença em si.
A ideologização e o amadorismo em um tema técnico e científico, seja na medicina, na economia ou nas relações humanas, são extremamente danosos à missão de todos de combater e derrotar o vírus. Um país dividido durante a guerra contra a doença confunde-se a si mesmo e baixa a sua imunidade para fazer frente aos muitos sacrifícios e desafios adiante.
Infelizmente, a divisão que tomou forma no Brasil tem origem naquele que deveria ser o primeiro responsável por unir a Nação em um momento de emergência. O desprezo do presidente Jair Bolsonaro e de seu entorno mais fanatizado pelas recomendações unânimes da Organização Mundial da Saúde e das autoridades sanitárias das principais nações da Terra não o isola apenas de grande parte do país: hoje, o presidente brasileiro é a voz mais destoante entre todos os chefes de Estado do G20, a ponto de a conservadora revista The Economist ter definido-o como “BolsoNero”. Até o presidente Donald Trump vem se mostrando bem mais cauteloso e responsável diante da pandemia do que seu discípulo brasileiro.
É notória a disposição presidencial em promover incêndios políticos para atiçar suas bases nas redes sociais, como foi o caso do pronunciamento em rede nacional na terça-feira passada. Agora, porém, não se trava uma luta planetária em arena ideológica. O coronavírus não distingue bandeiras ou correntes políticas, como comprova a contaminação de 25 pessoas da própria comitiva de Bolsonaro aos EUA. A barreira que impede o vírus de contaminar o organismo de um país é a unidade em torno da sensatez, da convicção científica e de uma liderança confiável. Na ausência destes atributos no Planalto, resta à sociedade depositar sua esperança nos ministros, governadores e prefeitos que tentam de todas as formas, inclusive com eventuais prejuízos políticos, conter o avanço do vírus.