Se a linguagem escrita acabar mesmo perdendo espaço para as mensagens de voz dos aplicativos, como tudo indica, vai chegar o dia em que continuaremos tendo textos bons e ruins, por insistência de uns inconformados, mas não mais leitores. Gravar áudios facilita a vida de todo mundo, principalmente quando se está em trânsito. Nos poupa também de erros de grafia, inevitáveis diante das deficiências de um ensino de pouca redação e nenhuma leitura, com o mínimo de raciocínio e sem perspectiva de melhora. Mas essa comodidade tem consequências.
Muito do pouco que sabemos hoje de nosso passado mais recente tem a ver com a escrita, principalmente com a literatura. Se alguns personagens de autores gaúchos promovessem uma espécie de fuga em massa dos livros, talvez não lotassem a Arena ou o Beira-Rio, nem o Gigantinho. Certamente, faltaria espaço no Chalé da Praça XV, no coração de Porto Alegre. O local perdeu um certo brilho de épocas áureas, como os próprios livros. As pessoas em volta estão empobrecidas e pouco veem além do próprio telefone celular. Ainda assim, o prédio histórico segue de pé, desafiando gerações e esses estranhos tempos.
Se fosse possível promover um encontro de criações de diferentes épocas no Chalé, o vaqueano Blau Nunes, "impulsivo na alegria e na temeridade", seria o primeiro a apear. Que assunto teria em comum esse personagem e narrador dos causos de Simões Lopes Neto, um escritor do qual deveríamos nos orgulhar mais, com João Guedes, por exemplo – sempre a pé e sem rumo, como o concebeu Cyro Martins? Sobre qual tema proseariam com Antônio Chimango, o sarcástico algoz de Borges de Medeiros, concebido em versos por Ramiro Barcellos sob o pseudônimo de Amaro Juvenal?
Só a literatura consegue nos explicar a dolorosa passagem do gaúcho a cavalo para o gaúcho a pé em que nos transformamos hoje. Se fosse ao encontro, Guedali Tratskovsky, O Centauro no Jardim de Moacyr Scliar, reforçaria aos convidados o quão dura é a luta para se livrar desta metade animal. Naziazeno Barbosa, o sofrido funcionário público criado por Dyonélio Machado, seria um ouvinte discreto, mas atento. Nada melhor do que ouvir histórias para tentar esquecer o salário atrasado de servidor, já no século passado, e a luta por um empréstimo para pagar o leiteiro, sob a ameaça de corte no fornecimento.
Difícil saber se a alucinante Dulce Veiga de Caio Fernando Abreu, que só quem leu o livro vai saber por onde anda, deixaria São Paulo para o encontro. O professor de educação física sem nome de Daniel Galera estaria lá com a cachorra Beta, perdido em meio à incômoda impossibilidade de identificar rostos. É incapaz de guardar sequer feições refeitas a bisturi como as de Dora Avante, a ravissante Dorinha de Luis Fernando Verissimo, sempre em luta contra a desatenção a suas propostas, digamos, fúteis para mudar o Brasil e o mundo.
Floriano Cambará, alter ego de Erico Verissimo, talvez ficasse com o recado final. Talvez repetisse no Chalé, se provocado, o que diz depois de dois séculos de narrativa em O Tempo e o Vento: "Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade". Se alguém perguntasse qual é essa realidade, diria de novo: o que somos. O que somos é justamente o que nenhuma outra obra ficcional gaúcha conseguiu traduzir de forma tão magistral. É o que só a boa literatura consegue fazer, ao eternizar a vida. A vida que, sem leitores, deixaria um mundo de personagens sem sentido.