Há algo de novo na correnteza da vida que se intensifica nesta época do ano. Por toda parte, vemos funcionários públicos penando. Olham vitrines transbordando ofertas e consultam catálogos de presentes, mas o 13º salário é uma incógnita, o valor do mês custa a sair. E, então, sonham, pois é o que lhes resta.
Temos hoje um verdadeiro exército de Naziazenos, formado por servidores de bolsos vazios, acuados por dívidas. Quem leu Os Ratos conhece a dor do barnabé a quem Dyonélio Machado batizou com esse estranho nome. Naziazeno Barbosa se vê sob a ameaça de ter o fornecimento de leite cortado no dia seguinte por falta de pagamento. No livro, como na vida, custamos a entender como é que alguém procura a segurança do poder público e esbarra na incerteza.
Lamentável que o nosso destemor se preste hoje apenas para destruir o argumento do outro.
Sim, no romance, o trabalhador está com o pagamento de empréstimos e as tarefas da repartição em atraso. Tem falta de sorte no jogo, dificuldade de encarar os credores e nenhum ânimo para batalhar por renda extra. A Porto Alegre de seu calvário é do tempo em que o leiteiro fazia as entregas de carroça, de porta em porta. Ainda assim, aquele cotidiano tem muito a ver com o dos funcionários de hoje.
Se pudéssemos ler seus pensamentos, como na obra do mestre do regionalismo, talvez percebêssemos até mesmo o temor de um ataque de roedores. Quando falta o salário, a própria integridade física e a dignidade ficam ameaçadas. Tem algo mais degradante do que correr atrás de empréstimo consignado? Pois é o que sobra para quem não é do Legislativo nem do Judiciário. Quando o limite estoura, a fé migra para as loterias. O leite precisa jorrar na panela na manhã seguinte, para que a luta recomece.
Por que passamos tanto tempo exaltando nossa bravura, mas assistimos inertes ao setor público tombar em cacos? Por que deixamos que o entulho soterrasse o funcionalismo e quem depende de seus serviços?
Entre os nossos mais instigantes dilemas, está o lançado em Juca Guerra, um dos Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto – outro de nossos clássicos no qual a realidade surgiu primeiro como ficção. Qual o mais valente, dispara o autor: o boteiro que salva afogado no mar e é condecorado por isso, ou o peão que livra alguém das patas de um touro, sacrificando seu próprio cavalo, sem obter qualquer reconhecimento?
Quem acha que é o "da beira da praia" não admite sequer ouvir as alegações de quem defende ser outro, o "da beira... da morte certa". E quem tem certeza de que é o peão despreza qualquer possibilidade de ser o barqueiro.
Preocupados com a nossa bravura, esquecemos do resto. De conferir as contas públicas no caderninho, na ponta do lápis. Dos próprios servidores, esses sofridos Naziazenos.
Lamentável que o nosso destemor se preste hoje apenas para destruir o argumento do outro. Se possível, o próprio outro. Nunca para avanços coletivos. É como se esse rio que é a vida fosse tristemente imutável, como as nossas convicções, como nós mesmos.