Mirar o Guaíba sem meditar sobre como o tratamos, ou o maltratamos, é como deixar escorrer entre os dedos a água que pode nos salvar da sede no deserto. Porto Alegre não sobreviveria sem esse lago chamado de rio que nos liga ao Atlântico pela Lagoa dos Patos e, portanto, ao mundo. Essa fonte mágica e vasta nos sacia, nos acolhe, nos emociona a cada pôr do sol, espalha temor e desgraça quando transborda, mas também prosperidade à sua volta, na lavoura e na pesca, na indústria e até no turismo.
Então, como é que não conseguimos levar adiante sequer o projeto para despoluir nosso cartão-postal? Pior: por que insistimos em soterrá-lo dia e noite com todo tipo de detrito, sem nos importarmos com flora e fauna, irredutíveis na nossa onipotência de senhores do mundo? E quando é mesmo que vamos concluir a revitalização de pelo menos uma parte mínima de sua margem esquerda, eternamente ornada pela grama alta, por mamoneiras e maricás?
Todo esse descaso tem muito a ver com o nosso jeito gaúcho de ser. Sitiados durante quatro sofridos anos pelos farrapos, os porto-alegrenses continuaram a receber mantimentos por via fluvial, e não se renderam. Das águas barrentas do Guaíba, aportaram na orla os casais açorianos, os escravos, os imigrantes. Mas são questões que parecem irrelevantes, pois não têm a ver com o nosso arquétipo idealizado do gaúcho.
É hora de salvar o Guaíba com o que resta de seus aguapés, jundiás, garças e tudo o mais.
Fizemos a cidade avançar para dentro dessa bacia hidrográfica reforçada pelo Jacuí, pelo Caí, pelo Sinos, pelo Gravataí – alguns deles tristemente incluídos entre os rios mais poluídos do país. Com os aterros, deixamos a Rua da Praia sem praia, a Praia de Belas sem praia e sem belas – só com esses prédios dispendiosos para abrigar a burocracia, que suga recursos e trava até projetos de preservação ambiental.
A partir de pontos elevados, ainda se consegue vislumbrar o cais, abandonado atrás de muros. Das janelas da Fundação Iberê Camargo, "a cidade envolta por uma névoa azulada é uma ponta que avança Guaíba adentro", na descrição de Erico Verissimo em Caminhos Cruzados. Na cúpula da Casa de Cultura Mario Quintana, dá para admirar as ilhas e seus mistérios. Mas ainda falta muito para democratizar esse lago, ou falso rio.
Quem vai devolver a balneabilidade das praias? Quem se dispõe a sustar o desmatamento na orla e controlar a extração de areia? Quem ousa multiplicar marinas públicas, facilitando a prática de esportes aquáticos mesmo para interessados com pouco dinheiro?
Povos de Porto Alegre e Viamão do lado leste, mais os de Eldorado do Sul, Guaíba e Barra do Ribeiro, no poente, e todos os demais que se banham em seus afluentes, uni-vos. Levantai-vos. É hora de salvar o Guaíba com o que resta de seus aguapés, jundiás, garças e tudo o mais. Somos parte indissociável desse ecossistema.
Precisa de dinheiro para isso? Sim, e muito, em quantidade que só se vê nos sonhos. Mas a vida não é sonho, como garante o poeta espanhol Pedro Calderón de la Barca? E não jorram reais para a política, que virou o nosso pesadelo permanente?
Em todo o mundo, cidades com um mínimo de consciência salvaram seus rios. Nem todos os gaúchos precisam pressionar por socorro ao Guaíba. A adesão de quem bebe sua água já é suficiente. O que não podemos é consentir com sua morte. Ou vamos querer cortar aquela parte das façanhas no nosso hino?