Por Ely José de Mattos, economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS
O governo do presidente Jair Bolsonaro começou de modo bastante intenso. Porém, não surpreendente. Ele tem adotado a linha desenhada na campanha eleitoral, inclusive sendo criticado justamente por parecer não ter descido do palanque. E um elemento que se destaca nesse contexto é o “combate à ideologia”. Em várias oportunidades, tanto o presidente quanto sua equipe se manifestaram afirmando que “tal coisa não terá viés ideológico”. Afirmações deste tipo apareceram de modo categórico nos ministérios do Meio Ambiente, da Mulher, Família e Direitos Humanos e das Relações Exteriores. Ideologia virou palavrão.
No entanto, nada na vida é vazio de ideologia. Cazuza cantava isso, em seu controverso álbum de 1988, quando clamava por ela. Definir ideologia, porém, é complexo. Mas, é possível dizer, ainda que de forma extremamente reducionista, que ela diz respeito a um conjunto organizado e coerente de ideias, pensamentos e visões de mundo que indivíduos e grupos têm e que norteiam seus posicionamentos e ações. Ou seja, de modo simplório, é aquilo que baliza nosso modo de nos posicionarmos perante o mundo. Até aquele churrasco do domingo, por exemplo, tem um tempero ideológico. Afinal, optou-se pela carne a despeito do vegetarianismo prosperar com base em questões complexas, como a defesa dos animais e o combate ao aquecimento global.
E até mesmo o ajuste fiscal carece de ideologia. Tome como exemplo o caso da reforma da Previdência. A idade mínima e outras restrições deverão ser implementadas, de modo que as pessoas se aposentarão mais velhas e ganhando menos. Para que isso não seja um desastre social, as contas públicas ajustadas devem gerar melhores condições de vida para essa população, como mais segurança, saneamento básico, educação, saúde. É esse conjunto de políticas públicas, além da reforma em si, que reflete uma ideologia representativa da visão de sociedade que o governo carrega.
Se alguém suspeitar que o escopo ideológico do atual governo pode não contemplar um conjunto de políticas que julgue adequado, poderá até ser contra a reforma da Previdência — e isso não será um absurdo. Afinal, a distribuição de ônus e bônus é a manifestação mais bem-acabada de como se pensa a sociedade como um todo. O discurso de uma política sem ideologia é equivocado, no sentido prático, ou diversionista.