No dia 16 de julho, durante transmissão ao vivo pelo Facebook, o presidente Jair Bolsonaro comentou as eleições presidenciais nos Estados Unidos:
– Espero, é a minha torcida aqui, eu não vou interferir em nada, nem posso, nem tenho como, que o Trump seja reeleito.
Ao reforçar que torce pelo aliado, disse ter certeza de que vai potencializar o relacionamento com Donald Trump, mas que, “se der o outro lado”, vai procurar “obviamente fazer algo semelhante”.
– Se eles não quiserem, paciência, né? – completou.
A menos de três meses da eleição, as chances de “dar o outro lado” nunca foram tão grandes. O candidato do Partido Democrata, o ex-vice de Barack Obama Joe Biden, aparece com sete pontos de vantagem em relação ao republicano nas pesquisas nacionais e à frente em Estados-chaves da disputa, os chamados swing states, que votam ora em um partido, ora em outro. Na live, pela primeira vez Bolsonaro admitiu uma possível derrota de Trump e fez menção de construir uma ponte com a oposição nos EUA, segundo informações de bastidores, por orientação do ex-secretário de Segurança Nacional norte-americano Jonh Bolton.
– O Brasil vai ter que se virar por aqui. Mas acho que nessa área comercial tem muita coisa entre o Brasil e os EUA independentemente de qual partido esteja no poder. Torço pelos republicanos, dada a liberdade que eu tenho, que o Trump me deu, de ligar para ele em qualquer momento que porventura precisar, ele está pronto para colaborar conosco. Então, eu espero que dê Trump, mas, se não der, a gente vai procurar aprofundar essa relação comercial nossa, porque afinal de contas o mundo todo, cada vez mais, está de olho no Brasil – comentou o brasileiro.
Trump é uma inspiração para Bolsonaro. Recém-eleito, ele bateu continência para Bolton, então enviado da Casa Branca ao Brasil. Na primeira visita ao presidente norte-americano, em março de 2019, houve elogios mútuos e o filho do brasileiro e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi convidado a sentar-se no Salão Oval, lugar reservado ao primeiro escalão do governo. Admiradores de Bolsonaro festejaram, afinal, não é todo dia que um brasileiro é recebido como amigo do presidente mais poderoso do planeta. Críticos viram outra cena: um presidente subserviente aos interesses de Washington. E criaram a alcunha de “Little Trump” (Pequeno Trump) para se referir a Bolsonaro.
Mais do que aliança estratégica, a maior proximidade entre os dois governos desde Castelo Branco, em 1964, a relação entre Trump e Bolsonaro é pessoal, costurada por elos que vão da agenda conservadora construída pelo ex-estrategista da campanha do norte-americano Steve Bannon, espelhada por Olavo de Carvalho, ao núcleo americanófilo no comando do Itamaraty. Os dois presidentes firmaram o acordo para uso da base de Alcântara, no Maranhão, para lançamento de satélites e foguetes. Também iniciaram uma negociação para um tratado de livre comércio. Os EUA apoiaram a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e designaram o país como aliado preferencial extra-Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em troca, o Brasil fez concessões, como a isenção de vistos para turistas norte-americanos sem reciprocidade para brasileiros, abdicou do status de país em desenvolvimento nas negociações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) e endossou posições dos EUA no cenário internacional, o que provocou estranhamento entre diplomatas acostumados ao pragmatismo: o país comprou briga com a China, principal parceiro comercial, comprometeu-se a transferir a embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém (depois, recuou diante da pressão de nações árabes, também aliados) e ameaçou deixar a Organização Mundial da Saúde (OMS), algo que Trump fez. Durante a pandemia, Bolsonaro imitou o colega em vários aspectos: inicialmente, negou a gravidade do coronavírus, depois fez propaganda da cloroquina e acelerou a reabertura da economia.
Diante dessa aliança, como ficarão as relações entre EUA e Brasil se, a partir de 20 de janeiro, Biden, “o outro lado”, assumir a Casa Branca?
Até oito meses atrás, essa era uma hipótese pouco provável. Com o índice de desemprego mais baixo em 50 anos de história e a economia em crescimento, Trump era praticamente imbatível – aliás, a reeleição é tradição nos EUA. Mas o coronavírus mudou o jogo. Hoje, o país lidera, seguido pelo Brasil, o ranking macabro dos mortos por covid-19. São as duas únicas nações do mundo com mais de 100 mil de óbitos. A quarentena resultou no pior desemprego desde a Grande Depressão. A economia entrou em recessão em fevereiro. No meio de tudo isso, o governo Trump é criticado pela forma como lidou com a morte do negro George Floyd por um policial branco em Minneapolis, episódio que escancarou as veias abertas do segregacionismo racial e deflagrou a campanha #BlackLivesMatter nos EUA, tratada com deboche pelo republicano. Com a popularidade despencando, Trump intitulou-se “presidente da lei e da ordem”, enviando tropas federais a cidades conflagradas por protestos – não à toa, governadas por democratas.
Segundo a média de pesquisa feita pelo site RealClearPolitics, Biden acumulou, por mais de seis semanas, uma vantagem entre oito e 10 pontos sobre Trump. Desde 1980, todos os candidatos que tiveram uma vantagem tão importante neste momento venceram – à exceção do democrata Michael Dukakis, derrotado por George Bush em 1988. No Texas, um Estado cobiçado no Colégio Eleitoral e no qual nenhum democrata conquistou uma vitória desde Jimmy Carter, em 1976, e onde Trump venceu com facilidade em 2016, ambos os candidatos estão lado a lado.
Biden conhece bem o Brasil. Em 2013, no auge da crise entre o governo Dilma Rousseff e Barack Obama em razão das denúncias de espionagem pela Agência de Segurança Nacional (NSA) escancaradas por Edward Snowden, o então vice foi destacado para atuar como bombeiro. Em 2014, esteve em Natal (RN) para assistir à seleção norte-americana na Copa do Mundo e, no ano seguinte, foi à posse de Dilma para o segundo mandato. Além disso, coordenou pessoalmente a negociação com o Brasil para a venda dos caças para a Força Aérea Brasileira (FAB) – o Brasil acabou comprando os Gripen suecos em detrimento dos aparelhos norte-americanos.
Ex-chefe da embaixada do Brasil em Washington, o embaixador Rubens Barbosa costuma fazer distinção entre o elo pessoal Bolsonaro-Trump e a relação institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana:
– Há uma relação estreita entre Bolsonaro e Trump, mas Trump vira e mexe critica Bolsonaro pela pandemia. O Congresso americano, o Departamento de Estado, deputados escreveram cartas, criticando o Brasil pelos desmatamentos (da Amazônia), pela maneira como o governo está conduzindo a pandemia, pelos direitos humanos. Mesmo com um presidente amigo, a burocracia tem aspectos contrários ao Brasil.
Para o diplomata, outro sintoma das divergências que poluem as relações, por trás dos afagos, é que restrições comerciais dos EUA a produtos brasileiros continuam, como sobre o aço e o alumínio, por exemplo. Em agosto, o Ministério da Economia decidiu não só prorrogar por mais um ano a importação de etanol norte-americano isenta de uma tarifa de 20% como elevou a cota dos 600 milhões para 750 milhões de litros, medida que atendeu aos interesses dos EUA e desagradou produtores do nordeste brasileiro, que consideram desleal a competição com o preço dos estrangeiros. Desde 2016, o Brasil é o país que mais compra etanol norte-americano. A expectativa dos produtores brasileiros era de que o governo dos EUA liberasse seu mercado de açúcar, um dos mais protegidos do mundo, mas não houve essa contrapartida.
– Então, continuam as divergências – pontua Barbosa.
Segundo Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM, a política externa de Biden deve ser orientada por quatro eixos: agenda multilateral, com base na defesa da democracia e contra regimes autoritários, reconstrução das bases diplomáticas do país, fortalecimento das alianças tradicionais, com apoio à Otan, e revisão da participação dos EUA no acordo nuclear com o Irã e no acordo de Paris. Em resumo: uma mudança da água para o vinho em relação a Trump. No intuito de rever as ações de Obama, o atual presidente retirou os EUA do Acordo de Paris, deu início à saída da OMS, menosprezou organismos internacionais, priorizou relações bilaterais em detrimento do multilateralismo e adotou uma retórica de confronto com o Irã.
– Considerando a posição do governo brasileiro de apoio incondicional a Trump, se a política externa de Biden for mais crítica e com posições contrárias aos interesses nacionais, o governo Bolsonaro terá de rever sua postura. Além de buscar pontes com o governo Biden para garantir os interesses brasileiros, especialmente na agenda de comércio – diz Denilde.
A professora afirma que, devido ao grau ideológico de alinhamento entre Trump e Bolsonaro, a diplomacia terá grandes dificuldades na aproximação com Biden, sem sinalizar uma mudança de discurso na defesa de uma agenda comum e que traga resultados positivos ao Brasil:
– Historicamente, o governo brasileiro tem uma agenda de maior atrito com governos democratas. Considerando as críticas internacionais ao governo Bolsonaro, não será diferente com Biden.
Uma amostra de divergências foi dada em julho pelo presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos EUA, deputado democrata Eliot Engel, que classificou como “vergonhosa e inaceitável” o que chamou de interferência da família Bolsonaro nas eleições. A declaração veio após Eduardo Bolsonaro compartilhar um vídeo da campanha de Trump no qual Hillary Clinton, Bill Clinton e Obama apareciam intercalados com a seguinte mensagem: “Primeiro eles te ignoram. Depois, riem de você. Depois o chamam de racista. Seu voto vai mostrar que eles estão todos errados”.
– A família Bolsonaro deve ficar fora da eleição dos EUA – disse Engel na conta da comissão no Twitter.
Na última terça-feira, em live promovida pelo Itamaraty para discutir as relações entre Brasil e EUA, Eduardo não mencionou nem uma única vez a eleição.
– Se Biden ganha, teremos muita reflexão para fazer. Apesar de ele conhecer bem o Brasil, não sei se vai dar relevância (ao Brasil) ou se vai querer o relacionamento que Trump tem. O nome do Brasil e o de Bolsonaro têm desgaste no cenário internacional. Para o qual Biden não ganha nada em defender – argumenta Welber Barral, estrategista-chefe do banco Ourinvest e secretário de Comércio Exterior entre 2007 e 2011.
Um dos pontos de discórdia deve ser a agenda ambiental. As manifestações recentes de empresários e políticos no Exterior mostram que o tema não está mais dissociado da economia. Estudo recente publicado na revista Science mostrou que pelo menos 17% da carne e 20% da soja exportadas pelo Brasil à União Europeia podem ter sido produzidas em áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia e no Cerrado. Em março, em entrevista à revista Americas Quarterly, Biden afirmou que seu governo “reuniria o mundo para garantir a proteção da floresta, caso o Brasil falhe na missão”. Anunciada na terça-feira como vice na chapa democrata, a senadora Kamala Harris também manifestou preocupação à época em que era pré-candidata: “Enquanto a Amazônia queima, o presidente do Brasil, parecido com Trump, que permitiu que madeireiros e mineiros destruam a Amazônia, não está agindo. Trump não deve buscar um acordo comercial com o Brasil até que Bolsonaro reverta sua política catastrófica e acabe com as queimadas. Precisamos da liderança americana para salvar o planeta”, tuitou em 24 de agosto de 2019. No dia anterior, havia escrito: “Bolsonaro deve responder por essa devastação. A Amazônia produz mais de 20% do oxigênio do mundo e abriga 1 milhão de indígenas. Qualquer destruição afeta a todos”.
Não se sabe como Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo reagiriam diante de afirmações desse tipo se Biden e Kamala estivessem na Casa Branca. Manifestações críticas de líderes, como o francês Emmanuel Macron e a alemã Angela Merkel, despertaram no passado a ira do governo brasileiro, foram taxadas de “globalistas” e abriram fissuras nas relações entre os países.
– Biden já afirmou em várias ocasiões que sua gestão somente participará de acordos comerciais que incluam a defesa de temas ambientais e trabalhistas. Então, podemos esperar pressão sobre o governo brasileiros nessas agendas – prevê Denilde.
Há uma relação estreita entre Bolsonaro e Trump, mas Trump vira e mexe critica Bolsonaro pela pandemia. O Congresso americano, o Departamento de Estado, deputados escreveram cartas, criticando o Brasil pelos desmatamentos (da Amazônia), pela maneira como o governo está conduzindo a pandemia, pelos direitos humanos. Mesmo com um presidente amigo, a burocracia tem aspectos contrários ao Brasil.
RUBENS BARBOSA
Embaixador
Especialistas em comércio afirmam que a relação bilateral entre os dois países é estável – ou seja, não fica a mercê dos humores de governos. Amizades entre presidentes ajudam, mas não são fundamentais, segundo Barral:
– Diplomatas não compram nem vendem. Na prática, já há um comércio intrafirma muito relevante: a questão de acesso ao mercado brasileiro para empresas norte-americanas. E o acesso ao mercado americano já tem as barreiras naturais, inclusive tarifas. Nisso, não mudou nada com Trump. Em termos realistas, houve um aspecto interessante: abriu-se o mercado americano de carne, mas não se vendeu nada porque eles produzem lá (nos EUA) também, e são concorrentes do Brasil no mercado chinês.
O alinhamento aos EUA não favoreceu a balança comercial brasileira. O comércio bilateral tampouco avançou e, para piorar, a troca voltou a ficar desfavorável para o Brasil. Conforme dados do Ministério da Economia, neste ano, as exportações do Brasil para o segundo maior parceiro comercial encolheram 31,7% em comparação com 2019. O saldo da balança acumulado entre janeiro e junho passou de um superávit de US$ 932 milhões, em 2019, para US$ 3,1 bilhões, neste ano, o maior rombo desde 2014.
Embora os democratas tenham fama de serem mais protecionistas do que os republicanos, Trump, com seu lema “America First”, privilegiando interesses nacionais, se aproximou muito mais de práticas tradicionais dos concorrentes.
– Houve uma certa imprevisibilidade comercial no governo Trump nas áreas de alumínio, aço e alguns setores agrícolas, em que eles aumentaram alíquota unilateralmente e suspenderam acordos. Entre os democratas, há grupos mais à esquerda, de Bernie Sanders, mas os republicamos no governo Trump fizeram concessões nessas medidas de defesa comercial que foram muito mais protecionistas do que Obama – explica o consultor.
Há 20 anos, os EUA eram o principal parceiro comercial do Brasil, sendo superados, mais recentemente, pela China. Muitos analistas afirmam que, em termos de comércio internacional, os norte-americanos hoje são competidores do Brasil, principalmente em produtos como soja, milho, carne e etanol. Para o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, a boa relação entre Trump e Bolsonaro faria a diferença na mesa de negociações, mas isso não foi revertido no comércio.
– Ter um laço de amizade com o presidente dos EUA, que é o maior país importador do mundo e o segundo maior exportador, é importantíssimo, é como se você estivesse abrindo um mercado, dando uma carta de alforria para entrar naquele mercado. Mas nada disso aconteceu até agora. Todas as reuniões que ocorreram até agora não tiveram benefícios comerciais, pelo contrário. A proximidade gerou uma expectativa para o mundo de que o Brasil poderia se beneficiar com os EUA, mas na prática não estamos vendo isso. A estatística mostra que o comércio está piorando. De superávit, virou déficit – explica Castro.
Infelizmente, Trump usa o Brasil. Recentemente, Brasil e EUA foram à OMC reclamar da China por esta não ser efetivamente uma economia de mercado. Todo mundo sabe disso. Mexemos com nosso principal mercado comprador para agradar aos EUA. Só que os EUA são nosso concorrente. O Brasil foi usado. Não foi dado opção. Por que brigar de graça?
JOSÉ AUGUSTOD E CASTRO
Presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB)
A geopolítica será outro problema sério para o governo brasileiro, caso Biden vença a eleição. A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) contra um representante brasileiro e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA para conter Pequim com pressão financeira sobre os países da região. Tanto democratas quanto republicanos entendem que a China é uma ameaça à hegemonia dos EUA no planeta. Assim, a disputa pelo mercado de 5G no Brasil entre os dois gigantes globais deve seguir pressionando o Planalto a uma posição. Castro critica o posicionamento brasileiro de adesão aos interesses do governo Trump, colocando-os acima da defesa de laços comerciais:
– Infelizmente, Trump usa o Brasil. Recentemente, Brasil e EUA foram à OMC reclamar da China por esta não ser efetivamente uma economia de mercado. Todo mundo sabe disso. Mexemos com nosso principal mercado comprador para agradar aos EUA. Só que os EUA são nosso concorrente. O Brasil foi usado. Não foi dado opção. Por que brigar de graça?
Nessa luta de titãs pelo poder global, a tecnologia 5G é apenas um dos fronts. Há outros: a questão dos direitos humanos no Tibete e em Hong Kong, a presença militar no Mar do Sul da China, a expansão do Belt and Road Initiative, megaprojeto de infraestrutura de Pequim, e a sempre polêmica questão de Taiwan, que a China considera seu território. A maioria dos especialistas concorda que o embate deve continuar em um eventual governo Biden. Diante desse cenário desafiador, o embaixador Rubens Barbosa defende o pragmatismo tradicional da Casa de Rio Branco:
– O Brasil não deve tomar partido nessa briga de cachorro grande. A exemplo de países da Europa, a gente tem de decidir de acordo com nosso interesse. Em alguns casos, vamos apoiar um, em outros casos, outro. Temos de seguir aqui o que os americanos fazem: “Brasil first”. Acima de ideologias, de geopolítica, a gente tem de tomar as decisões de acordo com nossos interesses.