Documentos fundamentais do Estado brasileiro, as novas Política Nacional de Defesa (PND) e Estratégia Nacional de Defesa (END), entregues pelo governo Jair Bolsonaro ao Congresso no último dia 22 e tema de reportagem no caderno DOC de GaúchaZH no final de semana, exibem contradições entre as visões dos ministérios da Defesa, da Economia e das Relações Exteriores. As exigências por maior investimento em defesa, desenvolvimento da base industrial e aposta em ciência e tecnologia, apregoadas pelos quartéis, esbarram na cartilha de austeridade do ministro Paulo Guedes, com ênfase na emenda do teto dos gastos públicos.
O Ministério da Defesa propõe o mínimo de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Forças Armadas. Não se trata de um percentual mágico, mas de uma meta estabelecida para países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Embora o Brasil não seja integrante da aliança atlântica, o investimento seria condizente com a grandiosidade da nação e diante dos gargalos de segurança internacional de um país com dimensões gigantescas e fronteiras porosas. Mas está desconectado da realidade de desigualdades sociais domésticas e suas distorções. Hoje, 80% do orçamento de defesa é destinado ao pagamento de salários. Ou seja, sobram apenas 20% para adestramento, compra de armas e munição – algo fundamental para forças armadas bem azeitadas e que têm pela frente desafios novos, como ameaças de conflitos assimétricos, ação de hackers e ciberterrorismo.
Outro desalinho ocorre entre Defesa e Política Externa. Os novos documentos estratégicos brasileiros propõem autonomia do país no cenário internacional, enquanto, na prática, o Itamaraty atual preza pelo alinhamento automático com o governo dos Estados Unidos. Ou seja, enquanto os generais defendem o saudável pragmatismo e independência do país na arena global – o que garante soberania sobre áreas sensíveis como a floresta amazônica e a chamada Amazônia Azul –, o Ministério das Relações Exteriores defende união carnal com a Casa Branca – por vezes, de subordinação dos interesses nacionais aos de Washington.
Há ainda contradições entre visões sobre o chamado entorno estratégico: as PND e END apregoam o incremento da cooperação entre os países sul-americanos e a consolidação da confiança mútua. Não é o que se vê na chamada diplomacia presidencial. Um exemplo é o Mercosul, fragmentado por disputas ideológicas – em especial, com o principal parceiro econômico e estratégico brasileiro, a Argentina do presidente Alberto Fernandez. Na realidade do dia a dia do ambiente da América do Sul, ao contrário do que destacam os documentos, amplia-se a divergência entre vizinhos, com o Planalto entendendo como parceiros apenas nações cujos governos compartilham da mesma visão de mundo supostamente antiglobalista.
Em seus textos de defesa, o Brasil opta por não dar nome aos bois: ou seja, quando fala em ameaça ao entorno estratégico cita apenas “potências extrarregionais”. Dá margem para todo tipo de interpretação: pode-se entender cobiça de países tão diversos quanto China, Estados Unidos, Reino Unido, França e até Rússia. Dependendo da lente que se usar, os documentos elegerão um inimigo.
A falta de coesão entre o que pensam Defesa, Itamaraty e Economia parece sintoma de uma PND e de uma END escritas por um número reduzido de interlocutores, e não fruto de um diálogo amplo entre os diferentes ministérios, Estado-maior e academia. Seria o mínimo a se esperar para textos que representam a espinha dorsal do pensamento geoestratégico de um Estado.