Uma reportagem do Grupo de Investigação da RBS, exibida pelo Jornal Nacional nesta sexta-feira (5), revelou como funciona um suposto esquema bilionário de desvio de recursos do programa Farmácia Popular, do governo federal, que distribui remédios de graça ou por valores reduzidos a 22 milhões de brasileiros.
Os suspeitos compram e até alugam registros de estabelecimentos que só existem no papel para fraudar o programa.
O GDI teve acesso a uma lista de 568 moradores do Rio Grande do Sul que teriam viajado mais de 2 mil quilômetros só pra retirar remédios em Planaltina, região administrativa do Distrito Federal, entre junho e setembro de 2023. Juntos, eles teriam recebido 1.316 caixas de medicamentos. Mas, no endereço da Farmácia Mil Drogas, em um terminal rodoviário da cidade-satélite de Brasília, a reportagem localizou um outro comércio.
O mecânico Magno Boeira, de Vacaria, aparece nesta relação. O sistema do ministério registrou o horário das supostas retiradas que ele teria feito de Humulin N, para diabetes (às 13h37min de 22 de junho), e de Aerodini, para asma (às 7h29min de 21 de setembro). Só que ele nunca esteve em Brasília. E também não tem qualquer dessas doenças.
— Fiquei meio em choque. Como, estando aqui em Vacaria, meu nome aparece lá em Brasília? Nunca conheci a cidade. Ainda mais comprando remédios pra asma, que eu nem tenho — afirmou.
O frentista Emmanuel Isaías Cumerlato, de Passo Fundo, também aparece na lista de clientes da suposta farmácia de Brasília. Conforme os registros do Ministério da Saúde, ele teria viajado à capital federal duas vezes para retirar uma caixa de Clenil HFA e duas caixas de Aerodini, ambos para asma, em junho e setembro de 2023.
— Nunca tive asma, nunca fui a Brasília. Com certeza, alguém está lucrando muito com o nome dos outros — afirma o frentista.
As farmácias credenciadas recebem do governo federal até 100% do valor dos medicamentos entregues a pacientes incluídos no programa. Dados do Ministério da Saúde mostram que a farmácia que só opera no papel recebeu, entre agosto de 2022 e novembro passado, R$ 1,4 milhão do programa. Mas o estabelecimento que funcionou onde hoje está um outro estabelecimento comercial de Planaltina está fechado desde 2021, segundo o Conselho Federal de Farmácia.
— Se ela está irregular desde 2022, não tem documentação. Não poderia conseguir adquirir esses medicamentos perante a distribuidora — afirma Gustavo Pires, secretário-geral do conselho.
As fraudes na farmácia de Brasília com nomes de clientes gaúchos começaram em agosto de 2022, um mês após ela ter trocado de dono, indicam documentos da Junta Comercial do DF. O antigo proprietário vendeu todas as cotas do capital social a um único comprador, que indicou como endereço residencial um terreno baldio no bairro Jardim Botânico, em Brasília. O mesmo vendedor transferiu a esse comprador o CNPJ de outras duas farmácias que já fecharam. Juntas, receberam do Ministério da Saúde quase R$ 2 milhões entre 2022 e 2023.
— De fato, é um indicador muito triste de que um programa com essa relevância para o país, para a população mais pobre do país, seja explorado por pessoas que queiram fraudar o programa e obter lucro indevido nesses tipos de situações — lamentou o ministro da Controladoria-Geral da União Vinicius Marques de Carvalho.
Programa tem falhas na fiscalização
Para conseguir um medicamento do Farmácia Popular, é preciso apresentar documento de identificação e receita. Assim que o paciente chega à drogaria, esses papéis são fotocopiados e ficam à disposição do Ministério da Saúde para eventual conferência. Para receber o pagamento do governo, basta a farmácia lançar no sistema do governo o CPF, o número do Conselho Regional de Medicina (CRM) que prescreveu o produto e o código de barras do medicamento.
A comerciante Luisa Paffrath é dona de uma farmácia que funciona legalmente em São Francisco de Paula e diz que, em oito anos, nunca houve uma fiscalização no local.
— A gente acredita que não tenha uma fiscalização ativa, porque, neste período todo, nunca vieram fiscalizar a farmácia, nem as notinhas, em relação à receita — afirma a comerciante.
O Sindicato dos Servidores do Sistema Nacional de Auditoria do SUS confirma a impressão de Luisa. E justifica, dizendo que o número de fiscais diminui a cada ano.
— Hoje, não temos mais do que 10 servidores fazendo esse trabalho para 31 mil farmácias. O orçamento do programa aumentou. E a quantidade de servidores vem decrescendo de uma forma bruta — diz o enfermeiro e diretor-adjunto de Comunicação do sindicato, João Paulo Martins Viana.
Além da fiscalização precária, o programa carece de ferramentas de inteligência, como cruzamento de dados.
— Não há nenhum programa que cruze esses dados. É impossível que haja essa falha gritante, de um morador do Sul retirando remédio em uma farmácia no Centro-Oeste, e o sistema não emita qualquer sinal de suspeita — diz o advogado especialista em direito administrativo e gestão pública, José Luiz Blaszak
Também não existe ligação entre os bancos de dados do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Farmácia, o que poderia disparar um alerta sempre que um estabelecimento fechar ou se tornar irregular.
O que diz o Ministério da Saúde
Sobre a suposta fraude
"O Ministério da Saúde informa que as empresas citadas foram inativadas do programa Farmácia Popular em 2023, após ações de monitoramento e controle realizadas pela atual gestão.
Importante reforçar que o Programa Farmácia Popular, hoje, abrange 96% da população, com 4.677 municípios assistidos.
A pasta esclarece que, para reconstruir o programa Farmácia Popular, após desestruturação e desmonte da última gestão, trabalha em conjunto com o Tribunal de Contas da União (TCU) e com a Controladoria-Geral da União (AGU) para ampliar o acesso da população a medicamentos.
Como resultado desse trabalho, de janeiro a março de 2024, o Ministério da Saúde já descredenciou 53 farmácias e multou 266 - números superiores a todo o ano de 2022. Ao longo de 2023, foram suspensas 506 farmácias com indícios de irregularidades, o que representa um aumento de 644% em relação ao ano de 2022. Nesse mesmo ano, a pasta descredenciou, por motivo de irregularidades, 233 farmácias e multou 266, representando um aumento de mais de 700% em relação ao ano de 2022.
Importante esclarecer que, após os resultados da apuração, se houver irregularidades, os estabelecimentos sofrerão penalidades e passam por processos administrativos para devolução dos recursos, além da notificação para as autoridades competentes, como Polícia Federal e Ministério Público Federal."
Sobre os problemas de fiscalização
"O quadro de pessoal do componente federal de auditoria do SUS (DenaSUS) é composto, atualmente, por 455 servidores, que estão envolvidos nas ações de monitoramento do Programa Farmácia Popular do Brasil, bem como em diversas outras atividades de auditoria. No ano passado, o DenaSUS realizou 783 atividades que englobam auditorias, inspeções técnicas, monitoramentos, procedimentos de análise informatizada, visitas técnicas e inspeções específicas do Programa Farmácia Popular.
Com relação à estruturação dos recursos humanos do componente federal de auditoria do SUS, é importante ressaltar que a atual gestão tomou todas as medidas cabíveis para recomposição de seu quadro, considerando que, para a adequada execução de suas atribuições legais, o DenaSUS deve contar com capacidade operacional máxima, dada a importância das suas atividades.
Nesse sentido, uma proposta de estruturação do quadro de pessoal da auditoria do SUS foi elaborada, aprovada pela Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde e está em processo de implementação."
Sobre as farmácias sob suspeita
"A empresa Mil Drogas e as outras duas mencionadas na reportagem não estavam inativas junto ao Programa Farmácia Popular no ano de 2022. A conexão dessa empresa ao sistema de vendas foi inativada no ano de 2023, após ações de monitoramento realizadas pela atual gestão do programa."
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