Uma professora de uma escola de Educação Infantil de Canoas, conveniada da prefeitura, é suspeita de gritar, ameaçar, humilhar e até negar comida e água a crianças. A partir de informações de vizinhos da escolinha, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS verificou situações que indicariam maus-tratos e injúria racial por parte desta funcionária da Escola Anjos e Marmanjos, no bairro Rio Branco. Depois que o GDI apresentou gravações à direção da escola, a professora, cujo nome não foi revelado, foi afastada das funções.
Conversas da funcionária foram gravadas por moradores da região, preocupados com o tom de agressividade da mulher em relação às crianças, e também pelo GDI.
— Eu quero que tu cale a tua boca e que tu coma — disse a professora a uma criança durante o almoço da última segunda-feira, 2 de maio.
Na sexta-feira, 1º de abril, a mesma funcionária se dirigiu a um aluno com ameaça:
— A próxima vez que tu botar a mão em alguma coisa que for minha, vou te cortar tua mão fora. Eu te juro.
Ao conversar com outra pessoa, contando o que o aluno teria feito, de cuspir no copo de água, a professora faz mais uma ameaça:
— Vou fazer tomar tudo até a última gota e sentado no sol ainda.
Em 5 de abril, uma terça-feira, um dos dias em que o GDI esteve observando o local, a mesma funcionária disse que não daria almoço a uma criança. Logo em seguida, um menino pediu:
— Quero uma água porque eu tô quente.
A professora nega:
—Não, não senhor, se tu estivesse quieto tu não estaria quente. É porque tu não para nunca.
Em outra gravação feita por moradores no ano passado, ao se referir a uma aluna em uma conversa, a mulher diz:
— Eu tenho nojo daquela nega nojenta. Eu tenho nojo dela, ela é debochada, nojenta, asquerosa, ela fica te olhando, te tirando.
A escola é particular, mas tem todas as 136 vagas da matriz, na Rua Boa Esperança, ocupadas por alunos da rede pública municipal. Na filial, são mais 23 alunos do município. A prefeitura compra vagas na Anjos e Marmanjos — assim como em outras — para suprir a carência de escolas próprias. Na última terça-feira (3), o GDI esteve na escola e mostrou trechos dos áudios.
Depois de ouvir duas vezes as gravações, a diretora Letícia Ferreira, que atua na escola desde 2018, disse não reconhecer a voz como sendo de alguma professora. A coordenadora da Anjos e Marmanjos, Josiane Silva, analisou o material e também afirmou não reconhecer a voz. Ainda assim, ambas classificaram como "inadmissível" a conduta e disseram que, se fossem comprovados os fatos, seria caso de demissão por justa causa. Josiane destacou ainda que em reuniões com os funcionários sempre são dadas orientações sobre como lidar com as crianças e que não deve haver gritos.
Uma hora depois da visita do GDI à escola, a professora recebeu comunicação de afastamento das funções por 10 dias. A Anjos e Marmanjos não informou o tempo de serviço da mulher na instituição nem por qual turma ela era responsável. Mas as crianças que frequentam o refeitório, local de onde foi possível ouvir as conversas, têm entre dois e seis anos.
Por se tratar de possíveis crimes contra vulneráveis, assim que recebeu as primeiras denúncias, o GDI compartilhou as suspeitas com a Polícia Civil, que passou a monitorar o caso e abriu inquérito para apurar o que realmente acontecia na escola. Funcionários e pais de alunos serão ouvidos para tentar identificar as crianças que possam ter sido alvo de maus-tratos e para tentar reconstituir situações presenciadas por outros funcionários. Segundo o delegado Pablo Rocha, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Canoas (DPCA), as situações conhecidas até o momento se enquadrariam em maus-tratos, crime previsto no artigo 136 do Código Penal.
— É inadmissível em qualquer hipótese essa espécie de tratamento a uma criança. A rispidez que se verifica nos áudios não pode encontrar em qualquer atitude de uma criança justificativa. Tem de haver maior preparo para trabalhar nessas instituições e lidar com situações — afirmou o delegado.
O Ministério Público de Canoas também foi avisado. O promotor da Infância e Juventude, João Paulo Fontoura de Medeiros, abriu procedimento administrativo, que, dependendo dos desdobramentos, poderá embasar eventual ação civil pública.
— Será imediatamente oficiado à prefeitura municipal, para que informe quais serão as providências a serem tomadas por parte do município, levando-se em conta que se trata de escola infantil conveniada, com vagas compradas pela prefeitura. Também será remetido ofício ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica), levando-se em conta que é o órgão responsável pelo credenciamento da referida escola. Igualmente será requisitado, na apuração policial, a verificação sobre se mais cuidadoras compactuavam com o comportamento em questão — explicou o promotor.
Ao analisar as gravações, o representante do MP avaliou:
— Não bastasse a rispidez com que as crianças são tratadas, o fato é que, ao se verificar o uso da expressão "nega nojenta" para se referir a uma criança (em especial) ou a quem quer que seja, pode-se perceber nitidamente que se faz ausente o preparo que se tem de exigir no trato para com crianças.
Vizinhos fizeram denúncias antes da pandemia sobre gritos com alunos
As conversas que indicariam maus-tratos por parte de uma professora da Escola Infantil Anjos e Marmanjos foram registradas, em sua maioria, durante almoços. Por volta das 10h30min, as turmas começam a receber a alimentação em um espaço nos fundos do prédio, junto ao pátio.
A direção da escola disse ao GDI que não há câmera de segurança neste local das refeições. E que, onde há, as gravações ficam disponíveis por apenas três dias.
Uma idosa que costuma visitar uma amiga nas proximidades da escola garante que também ouviu xingamentos:
— Um dia eu voltei para casa nem tinha fome para almoçar. Fiquei muito, muito triste com o tratamento que aquela professora dá para as crianças. Ela grita, humilha. Se fosse meu neto, na hora tirava da escola. A gente coloca numa creche para receber boa formação, e aquela humilhação nem os pais nem ninguém têm direito de fazer. Ela grita e humilha. Dá berros humilhando uma criança específica. O que diz para eles são coisas horríveis. Fui professora, me coloco no lugar dessas crianças. Não é assim que um professor desempenha seu papel — diz a aposentada de 75 anos que pediu para não ser identificada, mas garantiu estar disposta a depor à polícia.
As crianças entre dois e seis anos fazem as refeições nos fundos da escola, em um pedaço de pátio coberto. Por isso, naqueles momentos, ficava mais fácil ouvir as conversas e o tratamento dado às crianças. Agora, a polícia quer apurar também o que ocorria dentro do prédio, quando a professora estava sozinha com a turma na sala de aula, por exemplo.
Moradores registraram conversas da professora esporadicamente. Dois teriam feito denúncias anônimas à prefeitura, ainda antes da pandemia, em meados de 2019. Conforme a própria escola admitiu ao GDI, em 2019, o Conselho Tutelar fez inspeção no local por causa de denúncias sobre gritos de funcionárias com as crianças. Mas nada teria sido comprovado, segundo a direção da Anjos e Marmanjos.
O GDI questionou o Conselho Tutelar sobre o episódio, mas a entidade não localizou informações sobre a inspeção. A Secretaria Municipal de Educação de Canoas disse não ter registro de denúncias envolvendo a escola. O GDI também questionou o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica) sobre os episódios de 2019. O órgão ficou de verificar.
Gravações
Sexta-feira, 1º de abril de 2022
Professora fala para uma criança:
— A próxima vez que tu botar a mão em alguma coisa que for minha, vou te cortar tua mão fora. Eu te juro. Toma água aqui, agora. Não devia te dar nem água, deixar tua boca apimentada até não querer mais.
— Pegar os bicos ali na sala de vocês - ordena aos demais.
— Não mandei ele botar as mão na minha massa. Sabe o que ele fez? Ele tomou um gole e cuspiu dentro. Vai tomar, vou fazer tomar tudo até a última gota e sentado no sol ainda.
— Vamos querido, toma tua água e vamos subir — diz a mulher, fazendo barulho de batida possivelmente em uma mesa.
— Pra tu aprender a não ser olhudo.
Terça-feira, 5 de abril de 2022
Funcionária fala para uma criança:
— Eu acho que de verdade nem almoço tu vai ganhar. Eu acho que nem almoço tu vai ganhar, porque eu tô bem pensando.
Criança:
— Eu quero uma água porque eu tô quente.
Ele responde:
— Como é que é, guri?
Criança:
— Eu quero uma água.
A mulher diz:
— Não, não senhor, se tu estivesse quieto tu não estaria quente. É porque tu não para nunca.
— Tu quer ver que tu não vai ganhar nem sobremesa?
Terça-feira, 12 de abril de 2022
Professora fala com a turma:
— Vamos lá, galera. vamos subir.
A criança responde:
— Não.
Professora:
— Problema teu. Tu não me vem com papo. Coloca esse prato de comida aqui. Tu quer comer, come aqui....
A mulher dá ordem a uma criança:
— Baixa, baixa tua cabeça aí, baixa, agora. Bota as mãos na orelha mesmo.
Funcionária se dirige a uma criança:
— Então tu come que eu preciso subir, querida, isso aqui não é brincadeira.
Segunda-feira, 2 de maio de 2022
— Eu quero que tu cale a tua boca e que tu coma.
2021
Professora conversa com outra mulher:
— Eu vou deixar aqui, vou mandar ela vim buscar. Eu tenho nojo daquela nega nojenta.
A outra mulher pergunta:
—Quem é?
A professora responde:
— A Luiza.
Mulher se surpreende:
— Capaz!
Ela finaliza:
— Eu tenho nojo dela, ela é debochada, nojenta, asquerosa, ela fica te olhando, te tirando. Vou fazer ela vim buscar a máscara dela.
Contrapontos
O que diz a Escola Infantil Anjos e Marmanjos, por intermédio do advogado Robervan Andreolla:
"Minha cliente (dona da escola, Cristiane Loureiro Silveira) desconhecia a existência de qualquer áudio, denúncia, ou reclamação de pais contra a funcionária que, supostamente, fala nos áudios. Considerando a presunção de ser real o áudio que nos foi apresentado, a escola deliberadamente afastou a funcionária pelo prazo mínimo de 10 dias, a fim de averiguar todos os fatos e, de forma racional e justa, tomar as medidas legais cabíveis. Mas cabe salientar que a escola não está de posse dos áudios. A escola está diligenciando em procedimentos internos a fim de averiguar todos os fatos apontados e até a semana que vem, concluirá através de um relatório, o qual será apresentado para a SME de Canoas. Ato contínuo, nos dirigimos até a Secretaria Municipal de Educação de Canoas, relatamos todos os fatos e registramos em ata.
A escola, em seus quase 20 anos de existência, nunca teve qualquer tipo de denúncia, seja de pais ou professores, por condutas impróprias de seus funcionários. Sabemos que falhas podem ocorrer, porém, sem afastar o dever de corrigir os erros, não podemos denegrir a imagem de uma pessoa, seja ela jurídica ou física, por um ato isolado. Como prova da conduta ilibada da minha cliente, graças a prestação do seu trabalho dentro das regras impostas por leis e políticas educacionais, possui credenciamento junto à prefeitura Municipal de Canoas desde o ano de 2010, independentemente do partido político que está na administração.
O que diz a prefeitura de Canoas:
"Na tarde desta terça-feira (3), a Secretaria Municipal da Educação de Canoas foi procurada pelos gestores da Escola de Educação Infantil Anjos e Marmanjos sobre um suposto áudio em que uma professora teve conduta inadequada com alunos na instituição. Após tomar ciência dos fatos, ainda que a escola não seja da rede municipal, mas sim conveniada (ou seja, quando a prefeitura compra vagas em instituições para suprir a demanda da rede pública), a prefeitura protocolou uma ata junto ao Conselho Municipal da Educação solicitando ao órgão, que é responsável pelos credenciamentos em escolas particulares, que apure o acontecido e, se necessário, tome as medidas cabíveis, não descartando a suspensão do contrato. A prefeitura de Canoas ressalta que sua responsabilidade em relação a escolas credenciadas é: fiscalizar a estrutura física, manutenção dos espaços, oferecimento de alimentação e atendimento educacional e pedagógico para as crianças de 0 a 6 anos, além de assegurar que a instituição atenda com o número de professores por turma adequado."