A Polícia Civil investiga o fundador e ex-presidente do Grupo Escoteiro Guamirim, de Fontoura Xavier, no norte do Estado, suspeito de ter cometido abusos sexuais contra crianças e adolescentes que integravam a equipe. Já foram tomados os depoimentos de 18 ex-escoteiros, que deram detalhes do que teria ocorrido ao longo de anos no Guamirim, que encerrou as atividades em 2017.
Ao longo de quatro meses de apuração, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) procurou esses jovens para saber o que teria acontecido durante atividades de escotismo e no convívio social com o suspeito de cometer os abusos: André Carvalho Lacerda, o chefe André, o homem que fundou o Guamirim em 2007 e que chegou a comandar mais de 80 escoteiros na cidade, conforme ex-integrantes. Veja abaixo o relato de seis deles:
Cuidados que adotamos para a realização desta reportagem:
1 - Os jovens entrevistados pelo GDI não são identificados para evitar constrangimentos. Por isso, as imagens e as vozes foram distorcidas. 2 - A mãe de um ex-escoteiro que foi entrevistada também não é identificada, para preservar o filho. 3 - Confirmamos junto à Polícia Civil e ao Ministério Público que os relatos foram formalizados em depoimento pelos ex-escoteiros e que o caso está sob investigação de autoridades. 4 - Confirmamos com a União dos Escoteiros do Brasil a participação e a trajetória no escotismo do homem apontado como suspeito dos abusos sexuais.
"Pensava em outras coisas para sair daquele momento logo"
A notícia sobre a criação de um grupo de escoteiros em Fontoura Xavier chegou à escola quando ele tinha 12 anos. Animados, ele e os amigos foram na apresentação feita por André Carvalho Lacerda. Ficaram encantados com a proposta.
— Ele falou das atividades, das leis dos escoteiros, que íamos acampar, ter brincadeiras — recorda o universitário de 23 anos.
Começava ali, em 2007, o que hoje ele e outros 17 ex-escoteiros contam terem sido anos de abusos sexuais cometidos pelo chefe André:
"Ele sabia que eu tinha problemas familiares com os pais. Ele me chamou para conversar na casa dele, era de noite e os guris estavam jogando. Ele me chamou no quarto dele. Falou da vida dele. Comentou que estava desenvolvendo um tumor na barriga. Pediu pra eu passar a mão na barriga dele. Perguntou se eu sentia um caroço. Disse que era um tumor que estava crescendo e não sabia quanto tempo de vida ele tinha. Eu fiquei preocupado. A gente sempre se perguntava: 'Quando o chefe André morrer, o que vai ser de nós?'. Ele disse que eu tinha uma forma de ajudar ele. Eu pensei: eu ajudo. Nesse momento, ele ficava me acariciando.
Ele mandou eu ficar quieto e não fazer nada, e aí ele começou a (descreve o ato sexual). E eu achando que estava fazendo uma coisa boa, ajudando ele. Até naquele tempo eu tinha fimose, eu nem sabia o que era. Ele pediu para eu ir no médico, eu fui e tratei. Eu fui abusado em acampamento, a questão de eu estar tomando banho e ele mandar deixar a porta aberta.
Eu me sentia bem com ele porque eu tinha problemas familiares. Para eu ter contato com meus amigos, eu tinha que estar perto dele. E, estando perto dele, ele me abusava.
UNIVERSITÁRIO DE 23 ANOS
ex-escoteiro
Eu me sentia bem com ele porque eu tinha problemas familiares. Para eu ter contato com meus amigos, eu tinha que estar perto dele. E, estando perto dele, ele me abusava.
Quando comecei a entender essa parte, ali com meus 16, 17 anos, até quando eu fui abusado a primeira vez, eu até pensava em outras coisas, eu não sentia tesão por isso. Eu sempre fechava o olho, pensava em outras coisas para sair daquele momento logo, para realmente gozar logo e ele acabar o ato.
Hoje, eu namoro, e quando estou fazendo sexo eu me recordo disso e não consigo sentir muito prazer. É complicado. E até a questão do amor pelas pessoas, eu não sou uma pessoa que sente amor. Eu hoje faço tratamento com psicólogo. E com psiquiatra, com remédios, faz três anos."
"Nós éramos como instrumento para ele nos usar"
Outro dos ex-escoteiros que contam terem sofrido abusos sexuais, hoje com 23 anos, foi um dos que por mais tempo teria sido alvo das ações de André Carvalho Lacerda: ele ingressou no Grupo Escoteiro Guamirim com 11 anos e saiu com 17.
Foi ele que registrou a primeira ocorrência por estupro de vulnerável contra André, em dezembro. de 2018 A partir disso, um inquérito foi aberto para investigar o caso. A Polícia Civil já tem 18 depoimentos de vítimas, sendo que 17 afirmaram ter sofrido abusos e um, tentativas de abuso.
Ele começou se aproximando aos poucos, é inteligente, parece que premeditou. Ele foi montando o que era o André para nós. Quando sentiu que tinha poder sobre nossas mentes, conseguiu chegar como queria.
JOVEM DE 23 ANOS
ex-escoteiro
"Esses últimos meses foram difíceis para absorver, e tentar deixar isso no passado, que minha vida vai começar de forma diferente. Estou iniciando vida profissional, preciso absorver isso. Os meninos cada um tem uma característica em relação ao abuso. Eu era muito próximo ao André, eu queria muito ser igual a ele. Tinha dois meninos que ele falava que eram os que iam seguir os passos dele. Ele nos tratava de forma diferente, nos dava mais poder sobre os outros. Isso me fazia acreditar que tudo que ele falava era verdade. Isso me deslumbrou. Ele fez parte da nossa criação intelectual, falando como a gente devia agir. Sempre nos impôs o que queria. Ele conseguiu de tal forma que nunca comentamos com ninguém o que aconteceu.
Ele começou se aproximando aos poucos, é inteligente, parece que premeditou. Ele foi montando o que era o André para nós. Quando sentiu que tinha poder sobre nossas mentes, conseguiu chegar como queria. Dizia que tinha câncer e que o ato que a gente fazia era para ajudar ele a ter uma sobrevida. Acontecia o ato de a gente dar o espermatozoide para ele.
Ele tinha videogame, muitos objetos que nos instigavam, éramos jovens. Era contínuo (o abuso), praticamente, toda a semana. No que aconteceu vamos ter que passar uma borracha, mas a gente pode evitar que outras crianças sofram, que sejam influenciadas por uma pessoa que tem mente maligna. Ele tem sentimento para alimentar o ego dele, mas não que sinta algo por nós. Nós éramos como instrumento para ele nos usar, e isso não pode ser levado adiante."
"Quando ia me relacionar com mulheres, eu não conseguia. Vinha aquela cena na mente"
Ele tinha entre 10 e 11 anos quando recebeu o convite de André Carvalho Lacerda para entrar no grupo de escoteiros que estava sendo criado em Fontoura Xavier. Hoje, aos 22 anos, faz parte do grupo que afirma ter sofrido abusos sexuais durante anos.
"Ele falava que eu era um filho para ele. Aí começou o assédio. Ele tentava comprar a gente. Ele abusava da gente, ele (descreve atos sexuais). A gente ficava com medo de contar para alguém. Acontecia na casa dele e, às vezes, nos acampamentos.
Ele dizia que tinha um quarto que era só meu aí em Porto Alegre. Queria me adotar, falava essas coisas. Me prometia estudo, carro, que quando eu ficasse maior ia me ajudar, falava que ia me adotar, me dar condição de vida melhor, que ele podia, não tinha para quem dar, não tinha filhos. Ele convidava a gente para ir para Porto Alegre, bancava nossa passagem, bancava tudo para a gente ir.
Ele dizia que tinha um quarto que era só meu aí em Porto Alegre. Queria me adotar, falava essas coisas. Me prometia estudo, carro, que quando eu ficasse maior ia me ajudar.
JOVEM DE 22 ANOS
ex-escoteiro
Chegou um tempo que a gente começou a conversar e descobrir que ele fazia isso para todos, jogava um contra outro para que ninguém comentasse nada. Foi então que aconteceram alguns casos que a gente viu na TV de abuso e tal. Vendo isso, a gente não quer que aconteça com outras pessoas, a gente acredita que ele pode estar fazendo isso com outras pessoas.
Fica o trauma, teve uma época que até frequentei psicólogo, porque sei lá, não me sentia bem. Às vezes, até quando ia me relacionar com mulheres eu não conseguia, sabe? Vinha aquela cena na mente.
Pensei várias vezes (em denunciar), só que eu tinha medo. Ele sempre falava que pra ele as coisas eram fáceis, ele não tinha nada a perder, podia fazer qualquer coisa, tinha dinheiro."
"Pessoas assim são ameaças nas nossas vidas"
Tem 25 anos o jovem que desenterrou o assunto que marcou a vida de ex-escoteiros de Fontoura Xavier. Depois de fazer tratamento psicológico por um ano, ele decidiu contar o que sofrera a amigos. A revelação se ampliou quando outros ex-integrantes do Grupo Escoteiro Guamirim também relataram terem sido vítimas de abusos sexuais. Reunidos, os jovens procuraram a polícia para buscar Justiça. Em desabafo, o jovem diz:
— Ele parecia ter boa índole. Ele pensou em tudo, manipulou todo mundo, manipulou uma cidade.
A irritação dele me deixava mais nervoso. A única coisa que eu queria que acontecesse nesses momentos é que abrisse um buraco no chão e eu sumisse. Muito triste ter passado por isso.
JOVEM DE 25 ANOS
ex-escoteiro
"Nós criamos o grupo e todo mundo estava pedindo socorro com piadas. Foi quando percebi que estávamos precisando conversar. Na época, ele fazia fofocas e fazia com que a gente brigasse e ele passava a ser o melhor amigo. (Os abusos) aconteciam na casa de integrantes do grupo, quando as famílias não estavam, e também na casa dele. Ele levava no shopping, muitos não conheciam shopping e Porto alegre, ele dava presentes. Na época eu não pensava em falar, tinha receio, medo de que talvez não fosse abuso, que aquela história (da doença do suspeito) fosse real. Primeiro, ele fez todo mundo gostar dele como um irmão. Então tu nunca vai pensar que uma pessoa tão próxima poderia fazer esse tipo de coisa. Então, eu não pensava em denunciar.
Ele tocava no corpo, pedia para tocar. Tentava tocar no órgão sexual, sem sucesso, o que deixava ele irritado. A irritação dele me deixava mais nervoso. A única coisa que eu queria que acontecesse nesses momentos é que abrisse um buraco no chão e eu sumisse. Muito triste ter passado por isso.
Eu me tornei alguém desconfiado, excessivamente, o que me trouxe problemas de relacionamento, tive traumas. Foi quando busquei ajuda psicológica. O tratamento serviu para eu ter certeza de tudo. Minha família me deu todo o amparo e apoio.
Mas creio que conseguimos superar tudo isso. A nossa união, dos amigos, foi importante. E tem profissionais excelentes para auxiliar nesses situações, e os agressores serem punidos, tirarem eles da sociedade, porque pessoas assim são ameaças nas nossas vidas. Uma pessoa que faz isso com um, faz com vários."
"Eu tinha 11 anos. A gente não sabia nem o que estava acontecendo"
O universitário de 22 anos integrou o grupo de fundadores do Guamirim. Hoje, diz que tenta esquecer detalhes do que aconteceu:
"No começo, ele era como se fosse um segundo pai. A gente tinha confiança enorme nele, não somente nós os guris, mas nossas famílias também, ele frequentava minha casa direto. Nós tínhamos relacionamento de confiança. Como faz tempo, algumas coisas a gente tenta esquecer. Para muitos foi a primeira (vez) que alguém encostava na gente de outra forma. Eu tinha 11 anos. A gente não sabia nem o que estava acontecendo. Ele vinha com desculpas, tinha o poder de enrolar muito grande. Dizia que tinha doença. E, na época, criança inocente, o cara não entendia. Acontecia geralmente quando estávamos sozinhos na casa dele. Como nós tinha muita amizade, todos os guris frequentavam muito a casa dele, ele tinha videogame. E ajudava nós na questão da escola, em trabalhos.
Foi alguém que eu tinha muita confiança, que eu considerava quase um pai, e que quebrou essa confiança.
UNIVERSITÁRIO DE 22 ANOS
ex-escoteiro
Foi complicado, foi a primeira vez que alguém encostou em mim de outra forma. Sempre que eu tentava me relacionar com alguém na época, ele fazia de tudo para eu ficar sozinho. Ele inventava coisas. Então, foi complicado. Foi alguém que eu tinha muita confiança, que eu considerava quase um pai, e que quebrou essa confiança. Mas o bom é que quando a gente conversou entre os guris, isso melhorou um pouco, foi como um alívio. Apesar de tudo, ele fez uma coisa boa: que foi nos unir."
"Eu ainda não tive coragem de falar com meus pais"
Mesmo depois de dar depoimento à Polícia Civil, um jovem que participou do Grupo Escoteiro Guamirim por três anos ainda não conseguiu contar aos pais que foi vítima de tentativas de abuso.
— Ainda não tive coragem de falar para os meus pais, é uma situação muito desconfortável.
O universitário de 20 anos recorda que André Carvalho Lacerda pedia que ele sentasse a seu lado no sofá e lhe desse abraços e beijos no rosto.
— Me sentia desconfortável, mas pensava: "Ele me ama como um pai, que mal tem eu dar um abraço". Eu cheguei a considerar ele como uma figura paterna.
Eu chorei muito, muito. Ele disse que não queria fazer o que eu estava pensando, me soltou e começou a trabalhar meu psicológico. Falar de meus problemas com meus pais, dizer que eu era especial, que eu era como ele.
JOVEM DE 20 ANOS
ex-escoteiro
"Entrei no grupo por iniciativa de outros escoteiros. Conheci o André depois que estava no grupo, como chefe escoteiro superior a tudo, alguém a quem se deveria ter admiração muito grande pelo vasto conhecimento e pela titulação que tinha dentro do grupo de escoteiros. A gente tinha essa admiração. Em certos momentos, percebia aproximação, por olhar fixo ou abraço. Eu me sentia desconfortável com aquele tipo de abraço. Essa aproximação começou a aumentar. Ele mandava mensagens, dizia que tinha saudade, perguntava quando eu ia visitá-lo em Porto Alegre. Ele dizia que nos considerava como filhos, a gente sentia que nos amava como se fosse um pai.
Visitei ele em Porto Alegre, eu tinha 15 anos, ele me pedia para dar abraço, beijo, eu ficava desconfortável. Um dia ele me chamou e começou a falar que estava muito doente e me pediu para ir no quarto. Deitou e pediu para eu colocar a mão na barriga, pediu para eu deitar do lado dele. Deitei contrariado, com medo. Ele pediu que eu me virasse e abraçasse ele. Eu comecei a chorar. Ele segurou meu cinto e pôs os dedos na minha calça e puxou o cinto em direção a ele, fazendo com que eu ficasse muito próximo. Eu chorei muito, muito. Ele disse que não queria fazer o que eu estava pensando, me soltou e começou a trabalhar meu psicológico. Falar de meus problemas com meus pais, dizer que eu era especial, que eu era como ele.
Ele sempre queria que a gente dormisse na casa dele. A gente dizia não e se sentia culpado. Eu tinha que ficar me esquivando para não ter relações com ele. Eu ainda não tive coragem de falar com meus pais."
Como denunciar
Denuncie casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes para a Polícia Civil pelo telefone 0800-642-6400. O anonimato é garantido.
Contraponto
O que diz Vitor Guazzelli Peruchin, advogado que acompanhou o depoimento de André Carvalho Lacerda à Polícia Civil:
"O senhor André disse que não vai se manifestar na reportagem, pois todos os esclarecimentos já foram prestados à autoridade policial".
Continue lendo
Esta reportagem está dividida em seis partes. Clique para acessar o próximo conteúdo: