A Sabemi Seguradora teria retido mais de R$ 85 milhões que deveriam ser dos clientes que contratavam assistência financeira — modalidade de empréstimo disponível aos seus segurados — para repassar à Associação Mutualista de Assistência a Servidores Públicos (Somas) e ao Clube Pampa de Seguros. A consequência da prática era de que os consumidores não recebiam nas suas contas o total dos financiamentos contratados, já que a Sabemi, com sede em Porto Alegre e 38 filiais pelo país, repassava parte da quantia para terceiros com o argumento de que se tratava de uma "taxa de adesão ao quadro social" das duas entidades. Isso ocorreria sem autorização dos lesados, que fizeram, somente em 2016, 1.057 reclamações e denúncias à Superintendência dos Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Economia, responsável pela regulação dos mercados de seguro.
As constatações de retenções em desfavor de clientes fazem parte de um relatório produzido pela Susep e encaminhado posteriormente à Polícia Federal. Por conta da investigação, que também passou pelo Ministério Público Federal, se tornaram réus o diretor-presidente da Sabemi, Antônio Túlio Lima Severo, e o diretor administrativo-financeiro, Alexandre Girardi, sob acusação de crime contra o sistema financeiro nacional. O processo corre na 7ª Vara Federal de Porto Alegre.
O relatório de duas páginas do órgão regulador explica que, além dos abatimentos para fazer repasses à Somas e ao Clube Pampa, a Sabemi ainda descontava dos clientes o valor necessário para pagar comissões aos promotores de vendas que intermediavam os negócios. A prática é vedada. Foram verificados casos como o de uma mulher que contratou R$ 78,7 mil de empréstimo, mas recebeu da Sabemi R$ 58,3 mil, com a cobrança de juros aplicada sobre a cifra total, mesmo ela não tenha sido depositada à cliente.
"A Sabemi, ao conceder assistência financeira aos seus participantes, vinha descontando valores diretamente do montante emprestado e transferindo esses recursos em favor de empresas terceiras. (...) Os percentuais descontados apresentavam significativa relevância, ultrapassando 20% em quase todos os casos analisados", diz trecho do relatório de fiscalização da Susep, com assinatura eletrônica e datado de abril de 2018.
O documento reforça o vínculo da Sabemi com as empresas para as quais ela repassava recursos retidos dos clientes. O Clube Pampa de Seguros, um dos beneficiados, foi fundado em 1994 sob o nome Clube de Seguros Sabemi, o que indica terem a mesma origem. O CNPJ é o mesmo até hoje, independentemente da nomenclatura, que foi alterada em 2005. Os documentos estão no 1º Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas de Porto Alegre (confira o documento abaixo).
"As duas empresas mais favorecidas (Somas e Clube de Seguros Pampa, cuja razão social já foi Clube de Seguros Sabemi), que inclusive possuíam o mesmo presidente, chegaram a receber mais de R$ 85 milhões provenientes apenas dos contratos ativos em outubro de 2016", diz o relatório da Susep.
O presidente das duas entidades beneficiadas pela soma milionária é Paulo Ricardo Boaz Martins. Ele consta como dirigente desde os primórdios do Clube de Seguros Sabemi, que depois viria a se tornar Clube Pampa.
O órgão regulador registrou que a Sabemi não era clara ao explicar as operações.
"A própria seguradora se perdia ao tentar justificar os repasses, apresentando versões diferentes para o mesmo fato, todas elas impróprias, conforme relatado pela equipe de fiscalização. (...) Por fim, ao não encontrar mais justificativas plausíveis, a Sabemi simplesmente se esquivava de sua responsabilidade na operação, passando a alegar que efetuava o repasse dos recursos exclusivamente em cumprimento às ordens dos próprios consumidores, não tendo conhecimento da finalidade do valor pago", diz o relatório (confira o documento abaixo).
Em fiscalização de 2014, a Susep apurou que 99,84% dos contratos de assistência financeira realizados pela Sabemi continham os descontos. O público da seguradora nessas operações de empréstimo é o servidor público federal civil e militar, ativo e inativo.
Desde o dia 26 de junho, a Sabemi está impedida de conceder novos empréstimos, após ter suas operações de assistência financeira suspensas pela Susep por tempo indeterminado. Antes disso, reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelou outro suposto esquema de falsificação de assinaturas de aposentados do INSS para que eles tivessem descontos nos salários a título de "seguro associativo" na Central Nacional de Aposentados e Pensionistas (Centrape), parceira da Sabemi, que também se beneficiava das fraudes.
Contrapontos
O que diz Paulo Ricardo Boaz Martins, presidente do Clube Pampa e da Somas
"Achamos importante esclarecer o papel de clubes de seguros como o Pampa e Somas: clubes de seguros são associações sem fins lucrativos que congregam pessoas com as mesmas necessidades para contratação de seguros coletivos e benefícios. Em resumo, somos intermediários entre clientes e seguradoras. Com as apólices coletivas, conseguimos oferecer, além dos seguros contratados, benefícios e conveniências que variam de acordo com a modalidade contratada.
Todos os valores recebidos pelos clubes se referem a repasses autorizados pelos associados para a contratação desses seguros e benefícios. Nosso papel é fazer escolha desses seguros de acordo com as necessidades dos nossos associados com diversos parceiros de mercado. A Sabemi é um desses parceiros, entre outros. Tudo isso faz parte de uma prática de mercado e em nenhum momento houve irregularidade. Somos independentes e mantemos como a Sabemi, assim como com outras seguradoras, uma relação de negócio."
O que diz a Sabemi Seguradora
"Em primeiro lugar, não houve irregularidades e nenhum cliente foi lesado. Reiteramos com veemência que nenhum valor foi indevidamente cobrado nem recebido pela Sabemi. Nenhum valor foi retido pela Sabemi, portanto não há nenhum depósito na conta do Grupo Sabemi referente a esses descontos. Em outras palavras, não corresponde à verdade a informação de que a Sabemi teria indevidamente se beneficiado por esse montante. Os R$ 85 milhões referidos são pagamentos autorizados pelos clientes para terceiros. Destacamos que todas essas operações foram autorizadas pelos clientes, com registro formal sobre elas conforme as normas de mercado. Ressaltamos que o valor se refere à carteira ativa à época, de mais de 50 mil tomadores de assistência financeira, em um volume de assistência financeira superior a R$ 1,5 bilhão.
O Clube Pampa não tem qualquer vínculo societário com a Sabemi. A título de informação, clubes de seguros são uma prática usual no mercado de seguros de pessoas, como forma de reduzir o custo individual do seguro para o segurado, por meio de apólices coletivas. Quase todas as grandes seguradoras operam por meio de clubes de seguros, pois além de vantajoso para quem contrata o seguro facilita o processo operacional de adesão de um segurado a uma apólice coletiva estipulada por um clube. O Clube Pampa foi criado como Clube de Seguros Sabemi em 1994 e, por cinco anos, teve em sua diretoria pessoas ligadas à Sabemi. Porém, desde 5 de janeiro de 1999, portanto, há mais de 20 anos, a gestão é de terceiros, sem qualquer vínculo societário com a Sabemi, embora a entidade tenha mantido o nome original até 2005, quando passou a se chamar Clube de Seguros Pampa. Restou apenas o vínculo comercial, como o Clube Pampa mantém com outras seguradoras. O Grupo Sabemi não responde nem pelo Clube Pampa nem pela Somas. Reconhecemos a legitimidade do atual presidente das entidades, por ser um profissional de mercado."