A concentração de entulho, tijolos, resto de obras, madeira e lixo em um terreno localizado na Rua Beco do Paulino, bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre, parece um aterro sanitário ou um lixão, mas representa um problema muito maior. Ela é, na verdade, a denúncia a céu aberto de uma situação recorrente na Região Metropolitana: a transformação de terrenos que, sem fiscalização ou destinação, acabam se convertendo em locais de descarte ilegal de caliça e aterro clandestino de lixo.
A área da Zona Norte, que corresponde a mais de 59 mil metros quadrados pertencentes ao Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (Demhab), era, até dezembro de 2016, um terreno fechado e com vegetação. Alguns meses depois, entretanto, a paisagem mudou rápida e radicalmente. Invadida, virou um ponto particular de descarte de resíduos.
Durante dois meses, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS observou a movimentação no local e flagrou a rotina de dezenas de caminhões que entram, descarregam caliça e lixo no terreno e vão embora. A reportagem conseguiu identificar que os caminhões pertencem a 16 empresas de tele-entulho, que deveriam descartar as caçambas (contêineres) em áreas licenciadas e pagar para dar destino correto aos materiais.
— Tem custos com caminhão, custo com o descarte, o custo do destino final do material. Então, o que eles fazem? Vão lá e atiram na esquina, atiram em terrenos clandestinos — explicou ao GDI uma mulher que trabalha em uma empresa de tele-entulho da Região Metropolitana, que denuncia o descarte destas empresas em terrenos ilegais.
O objetivo, segundo a empresária, é a redução de custos. Quando os tele-entulhos descartam as caçambas em terrenos clandestinos, eles chegam a poupar até quatro vezes em relação ao que gastariam se encaminhassem a caliça para uma empresa licenciada, como determina a legislação.
— A gente não teria como largar uma caixa por menos de R$ 200 para caliça e nem por menos de R$ 400 para o misto. Só que com essa história de descartar no clandestino, eles estão queimando preço. Eles estão colocando a caixa a menos de R$ 100 o misto.
Aterro clandestino vira associação de moradores
O descarte de lixo nestes locais, apesar de ilegal, parece ser regrado. Pouco depois da invasão do terreno no bairro Ruben Berta, em 2016, os novos moradores da área já passaram a chamá-la de Associação Chapecoense (o nome é devido a invasão ter iniciado no dia da queda do avião do time de futebol de Santa Catarina, na Colômbia) e a alugá-la para as empresas de tele-entulho despejarem os resíduos clandestinamente.
Quem cobra dos caçambeiros é um homem que se apresenta como Júlio. Sem saber que estava sendo gravado e falando com a reportagem, Júlio disse ao repórter Fábio Almeida, da RBSTV, que faz parte da associação e que é o coordenador do aterro. O local conta inclusive com uma escavadeira para ajudar a espalhar o lixo.
— Eu cobro conforme a caçamba. A pequena, que eu digo, é aquela pequena de um eixo (aponta para um caminhão que chegava), é 50 pila (R$ 50). A grandona, a grandona é 100 pila (R$ 100). Eu já falo pra qualquer um, isso aqui é um troço clandestino, né. Não tem nada seguro, aqui, já falo para os caras. Já tem um ano e oito meses aterrando — contou.
Para o promotor de justiça de defesa do meio ambiente de Porto Alegre, Alexandre Saltz, a situação é extremamente grave.
— Nós temos ali uma deposição inadequada de resíduos, o que é proibido por lei, porque contamina o solo e o lençol freático. Nós, além disso, temos um possível crime contra o ordenamento urbano, consequência da construção de um loteamento clandestino, e sem dúvida nenhuma temos um episódio de poluição, visível poluição decorrente dessa deposição do lixo — explica.
O Instituto-Geral de Perícias (IGP) deve fazer uma uma vistoria no terreno, que também será alvo de investigação da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente da Polícia Civil, que busca a responsabilização criminal dos causadores da poluição, além de reparação ambiental do terreno.
O Demhab informou que há um processo de reintegração de posse dessa área e que também existe uma negociação mediada pelo Núcleo de Conciliação e Mediação do Tribunal de Justiça (TJ-RS), que envolve a possibilidade de realizar a regularização fundiária do local e produção de lotes urbanizados. Mas não informou se sabe das condições atuais, no qual o terreno foi transformado. O Ministério Público também vai investigar a situação do terreno e por que a prefeitura de Porto Alegre deixou chegar a essa situação.
As empresas flagradas
As empresas flagradas pela reportagem descartando o lixo irregular são: RELC Entulho, Oliveira Entulho, Almeida e Silva, Souza, Sustenlix, Reoli, Bueno, Krás, Access, Entuglio, Retro, DM, AG, ACC Cliver, Multi e terraplanagem Maronenze.
Entre todas as empresas, a Krás Entulho foi a mais recorrente. Os caminhões buscam diariamente caçambas com o resto de pelo menos duas grandes obras da construtora Tenda, que ficam na zona norte de Porto Alegre. Uma das construções fica na rua Gabriel Franco da Luz, no bairro Sarandi, e a outra em uma travessa entre as avenidas Bernardino Silveira Amorim e Nossa Senhora Aparecida, também no bairro Sarandi.
Contrapontos
A reportagem fez contato com todas as empresas flagradas. Até a publicação desta reportagem, a Retro não havia atendido ao telefone. Krás, Reoli, DM e Multi não quiseram se manifestar. Vieira, Access, ACC Cliver e Almeida e Silva disseram que desconhecem a situação e que o descarte é feito somente em locais licenciados. AG e Maronenze também afirmaram que não estão cientes da irregularidade.
As empresas Sustenlix, Bueno e Entuglio reconheceram que descartam lixo de forma irregular e afirmaram que o fazem por falta de opção de locais licenciados na região metropolitana. RELC e Souza também reclamaram da falta de locais adequados e com valor acessível para o descarte de resíduos.
Sobre os pontos de descarte do lixo, a prefeitura de Porto Alegre reafirmou que existem quatro locais licenciados para receber entulhos na capital e outros dois em Canoas. Já sobre a invasão e poluição na área investigada pelo GDI, a prefeitura garantiu que a regularização do local está sendo mediada pela Justiça.
A construtora Tenda, também citada na reportagem, afirma que está apurando a denúncia, que reprova a atitude das empresas e que vai tomar as medidas necessárias.