Por Marília Veríssimo Veronese
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, autora da pesquisa "Inquirindo as Epistemologias do Sul: Saberes e Práticas Sociais entre Catadores de Material Reciclável"
O catador de material reciclável urbano é a base da cadeia produtiva da reciclagem em nosso país. O Brasil promulgou políticas públicas para o fortalecimento dos catadores e suas organizações associativas: a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e o Programa Pró-Catador. A aprovação da PNRS do Brasil, lei federal 12.305/2010, constituiu um marco legal regulatório para a gestão integrada de resíduos sólidos e lançou novos desafios para a implantação e o aprimoramento da coleta seletiva nos municípios brasileiros.
Embora a gestão dos resíduos sólidos urbanos seja uma atribuição municipal, a PNRS estabelece mecanismos de indução desse modelo de coleta seletiva por meio de recursos econômicos para municípios que elaborarem seus Planos de Gestão Integrada de Resíduos seguindo essa diretriz. Entretanto, inúmeras dificuldades nos municípios geram atrasos na implementação, e quem mais sofre os efeitos da demora são os homens e as mulheres que se dedicam à catação. Esses trabalhadores vivenciam condições de vida ainda precárias, na periferia das grandes cidades. Os espaços sociais nos quais circulam, geralmente, os estigmatizam. A inserção econômica é limitada, e a renda obtida, nem sempre suficiente para garantir vida digna às famílias.
Contudo, a categoria profissional dos catadores organiza-se e luta pelo reconhecimento social da sua profissão, devidamente registrada no Código Brasileiro de Ocupações sob o número 5192-05: catador de material reciclável. As atribuições desses profissionais, segundo o código, são: "Catam, selecionam e vendem materiais recicláveis como papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos e outros materiais reaproveitáveis. As cooperativas de trabalhadores ministram treinamentos a seus cooperados, tais como cursos de segurança no trabalho, meio ambiente, dentre outros. O trabalho é exercido por profissionais que se organizam de forma autônoma ou em cooperativas. O trabalhador é exposto a variações climáticas, a riscos de acidente na manipulação do material, a acidentes de trânsito e à violência urbana. Nas cooperativas surgem especializações do trabalho que tendem a aumentar o número de postos, como os de separador, triador e enfardador".
Quem faz o trabalho de base, catando e separando material com potencial de reciclabilidade, evitando sérios problemas ambientais decorrentes da decomposição do lixo, é o catador. Por que esse trabalhador, tão importante para o meio urbano, não consegue atingir a plena cidadania, segurança, renda digna, amparo social e estima entre os membros estendidos da sua comunidade? Esse é um problema social e ético-moral que a sociedade brasileira precisa enfrentar.
Os catadores, por meio do Primeiro Encontro Nacional de Catadores de Papel e Material Reaproveitável, reunindo ONGs, Poder Público e Setor Privado, realizado na cidade de Belo Horizonte, em 1999, criaram oficialmente o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). O movimento estima que, aproximadamente, 800 mil catadores estejam em atividade no Brasil. Esse movimento social agrega a categoria para lutar por melhores condições de trabalho e vida, almejando dignidade a partir de uma valorização maior como base da cadeia produtiva da reciclagem. Lidam com o lixo, tornando-se alquimistas da sua transformação em trabalho, renda, dignidade e responsabilidade ambiental. É muito importante que participemos do processo, separando corretamente o lixo doméstico e empresarial e facilitando seu recolhimento.
Se procurarmos no dicionário online de sinônimos, encontraremos as seguintes entradas para a palavra "lixo": "Escória, gentalha, plebe, ralé". São palavras pejorativas que apontam para a desumanização contida nos processos de exclusão social, e por vezes o catador fica simbolicamente associado ao lixo que recolhe. Pois os catadores e as catadoras organizados recusam essa pecha, alquimistas que são. Transformam-na e transmutam-na em outro sentido: o da valorização e do orgulho de quem suporta nas costas, nos músculos do corpo, na inteligência do cérebro e na potência da subjetividade a base da cadeia produtiva de reciclagem no Brasil. Por mais que vivenciem inúmeras dificuldades e precariedades, estão se movendo na direção de um futuro no qual interferem cada vez mais. Toda a sociedade precisa engajar-se nesse processo e apoiar essa importante e valorosa categoria profissional.