Sem licitação, a prefeitura de Bagé alugou uma residência de dois andares na Rua Duque de Caxias, no centro de Porto Alegre, de propriedade do atual presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Iradir Pietroski. O objetivo é que o local funcione como uma casa de hospedagem gratuita destinada a pessoas que precisam fazer tratamentos de saúde em hospitais na Capital.
O contrato, assinado diretamente com Pietroski, sem a possibilidade de outros proprietários de moradias da região se credenciarem, entrou em vigor em 27 de outubro de 2017, com valor mensal de R$ 7.270. Nessa época, Pietroski era conselheiro do TCE, e assumiu a presidência da Corte pouco depois, em 18 de dezembro.
No Portal da Transparência da prefeitura de Bagé, não foi informado o período da locação e, conforme dados oficiais atualizados até 20 de junho, a quantia de R$ 29.080 estava liquidada pelo município para ser paga ao presidente do TCE — significa que está na última etapa antes de ingressar na conta do beneficiado. Outros R$ 21.810 estavam empenhados.
Os valores referem-se aos aluguéis devidos entre outubro de 2017 e maio de 2018.
O prefeito de Bagé é Divaldo Lara, do PTB. Um dos articuladores da inauguração da casa é o deputado estadual Luis Augusto Lara, irmão de Divaldo, também do PTB, responsável por oferecer a utilização do espaço até mesmo a moradores de outras cidades da Campanha, como Dom Pedrito, mediante assinatura de convênio. Pietroski é conselheiro do TCE desde 2010 e, antes disso, foi deputado estadual pelo PTB por cinco mandatos. Pietroski e Luis Augusto foram colegas na Assembleia por três legislaturas.
A residência alugada pelo presidente do TCE à prefeitura de Bagé fica no número 180 da Duque de Caxias. Ele a comprou em março de 2006, conforme certidão do registro de imóveis da 5ª Zona. Embora o contrato de aluguel com Bagé esteja valendo desde outubro de 2017, a inauguração da hospedaria ocorreu em 7 de junho deste ano.
Por quase oito meses, o imóvel de Pietroski passou por reforma. Sobre isso, GaúchaZH não encontrou muitos dados. Nesta terça-feira (26), a prefeitura informou ter gasto R$ 66 mil, entre material, mão de obra e diárias para os funcionários municipais que fizeram o serviço.
O prefeito, ao lado de Luis Augusto, publicou um vídeo nas redes sociais em 27 de outubro de 2017 em que mostrou funcionários da prefeitura trabalhando na reforma. Dados relativos à mobília são desconhecidos — a casa tem beliches, banheiros, sala de enfermagem, áreas de serviço e de convívio e suporta 40 hóspedes, entre pacientes de hospitais e seus acompanhantes.
No dia da inauguração, Luis Augusto chegou a parabenizar o irmão por supostamente ter conseguido encontrar uma casa que seria entregue sem custos à prefeitura de Bagé por um benfeitor para servir de abrigo. A afirmação difere da intenção inicial comprovada por documentos públicos, que asseguram pagamentos mensais de aluguel ao presidente do TCE — R$ 87.240 ao final de um ano.
No dia 19 de junho, menos de duas semanas após a inauguração, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) foi até a hospedaria. Encontrou uma funcionária e dois moradores de Bagé: uma mãe e o filho que estavam em Porto Alegre para passar por cirurgia. Logo após a portaria, o corredor principal tinha dois banners de divulgação da casa de hospedagem. À esquerda, uma mesa continha dezenas de exemplares de folhetos do abrigo e um jornal de 20 páginas com propaganda da prefeitura de Bagé.
A mesma casa foi albergue mantido por Pietroski em 2006. Na época, foi acusado, com outros deputados, por abuso de poder econômico, captação ilícita e compra de votos. Acabou absolvido no Tribunal Superior Eleitoral.
Negócio violaria legislação
O TCE é a corte responsável por fiscalizar as contas e os gastos dos municípios e do governo estadual. Como presidente, Iradir Pietroski está no comando da instituição que irá analisar a legalidade dos atos da administração da prefeitura de Bagé.
O fato de Pietroski ser servidor público, conselheiro e presidente do TCE seria impeditivo para que assinasse contrato de locação de imóvel de sua propriedade com uma prefeitura sem licitação. Podem ter sido violados os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade, previstos na Constituição Federal e na Lei das Licitações (Lei 8.666). O ato ainda pode ter desrespeitado o artigo 4º do Código de Ética dos Membros do Tribunal de Contas, que determina "lisura e probidade, inclusive no que concerne à relação entre suas atividades públicas e particulares".
A jurisprudência do próprio TCE oferece obstáculos para o contrato. A resolução 1009/2014 diz que "autorização de despesas sem cumprimento do devido processo licitatório" e "realização de despesa em desacordo com os princípios constitucionais, particularmente os da moralidade, da impessoalidade e da legalidade", podem levar a parecer desfavorável à administração.
A Lei das Licitações aborda, no artigo 24, os casos em que a licitação poderá ser dispensada. Uma das hipóteses, em casos de serviços e compras, são aquisições de até R$ 8 mil _ em um ano, o contrato de Pietroski com a prefeitura de Bagé chegaria a R$ 87.240.
Ainda na Lei das Licitações, o inciso X do artigo 24 abre brecha para contratações diretas, condicionando a compra ou locação de imóvel, "cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha" ao preço "compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia".
A prefeitura precisaria ter avaliado que, em todo o centro de Porto Alegre, somente a casa de Pietroski tinha as adequações pertinentes para receber a casa de hospedagem. O imóvel fica dois quilômetros distante da Santa Casa de Misericórdia — 25 minutos de caminhada.
Anúncio de cedência da casa após questionamento
Após receber informação sobre o contrato de aluguel sem licitação firmado entre Iradir Pietroski e a prefeitura de Bagé, o Ministério Público de Contas (MPC) abriu expediente em 12 de dezembro de 2017 para averiguar o caso. O MPC é um órgão de acusação e de investigação que faz parte da estrutura do TCE, com autonomia para apurar a conduta dos conselheiros.
Procurador do MPC, Geraldo Da Camino enviou ofícios à prefeitura, em fevereiro, solicitando informações. Isso levou o município a recuar momentaneamente: em 13 de março, estornou um dos empenhos, que previa pagamento de R$ 29.080 a Pietroski por aluguéis acumulados. Em 30 de maio, houve nova tentativa de encaminhar o pagamento. O empenho foi refeito (número 7411) e colocado em liquidação com o mesmo valor, com a justificativa de que o anterior havia sido "anulado indevidamente".
Com a sequência do procedimento no MPC, Pietroski comunicou desistência do negócio no dia da inauguração da casa de hospedagem. Em 7 de junho, enviou carta à prefeitura abrindo mão dos valores dos aluguéis. Ele informou que cederia a casa ao município por dois anos.
Dias depois, em 20 de junho, o prefeito Divaldo Lara remeteu ofício ao MPC informando que rescindiria o contrato de aluguel com Pietroski. Um novo contrato estaria em redação, prevendo que a casa da Rua Duque de Caxias seria cedida sem custos por dois anos para utilização pelo município da Campanha.
Até 20 de junho, os valores continuavam constando como liquidados em favor do presidente do TCE no Portal da Transparência da prefeitura de Bagé.
CONTRAPONTOS
O que diz a prefeitura de Bagé
"A base legal para a contratação em questão se encontra no artigo 24, X da Lei 8.666/93, sendo o valor do imóvel compatível com o valor de mercado, conforme avaliação prévia realizada por três imobiliárias, levando em consideração a sua localização, no caso próxima à rede hospitalar, com acesso ao transporte público coletivo, atendendo a finalidade de acordo com o disposto na legislação, tudo isso conforme DL nº 019/2017. Diante desse quadro, (...) não há que se falar na inobservância dos princípios administrativos, eis que as tratativas para locação do imóvel foram mantidas através da imobiliária Auxiliadora Predial (sem qualquer mácula ao princípio da impessoalidade e da moralidade). No trâmite do processo, devido à necessidade de adequação do imóvel, e, diante de disponibilidade e iniciativa do particular, foi acordada a rescisão amigável da contratação e pactuado contrato de comodato (empréstimo), onde o proprietário do imóvel renunciava aos valores dos aluguéis, pelo prazo de dois anos, totalizando mais R$ 174 mil.
A prefeitura, às suas expensas e sem a contratação de qualquer empreiteira, com pessoal do quadro, efetuou as referidas adequações mínimas necessárias, ao custo de aproximadamente R$ 66 mil, entre material, mão de obra e diárias. Os referidos materiais foram comprados conforme Registro de Preços vigentes à época. (...)
Não houve, durante esse trâmite, qualquer pagamento no âmbito do contrato rescindido, tampouco, ainda, será feito qualquer pagamento a título de aluguéis ou referente à locação. A referida casa de hospedagem tem como público-alvo bajeenses, em tratamento fora do domicílio, em notória vulnerabilidade, sem, contudo, se possa falar na hospedagem de pessoas de outro município. Essa hipótese, sequer ainda ventilada, passaria necessariamente pelo crivo de procedimento legal, com a respectiva pactuação administrativa com os municípios da região, conforme necessidade da devida contra-prestação pecuniária."
O que diz Iradir Pietroski
Por meio da assessoria de imprensa do TCE, informou que não iria se pronunciar sobre a reportagem.
O que diz Luis Augusto Lara
"Nunca foi feito nenhum pagamento ao proprietário do imóvel, pois o mesmo está sob regime de comodato (empréstimo) para a finalidade de acolher pessoas de Bagé que precisam de tratamento de saúde em Porto Alegre.
Não houve contratação de empresas, e as obras de adequação foram feitas por pessoal da prefeitura e voluntários. Os insumos foram comprados conforme registro de preço, portanto, com o menor custo à época.
Nenhum real de dinheiro público foi gasto em aluguel. Todos os procedimentos foram tomados em consonância e sob a orientação e fiscalização do Ministério Público de Contas.
Mediante convênio, é possível que outros municípios que desejam ajudar na manutenção da casa encaminhem pacientes para a casa de hospedagem em Porto Alegre, quando for necessário tratamento de saúde na Capital."