Os problemas do asfalto em Porto Alegre com frequência começam bem antes da obra. É o que indicam seis relatórios de auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) entre 2010 e 2015. Na série de reportagens Capital dos Buracos, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) analisou 3 mil páginas de documentos sobre o restauro e a conservação de vias da Capital.
Os relatórios das auditorias apontam irregularidades como a restrição a competidores nas licitações (o que possibilitaria o direcionamento do contrato), falta de habilitação técnica do responsável pelos projetos, pagamentos indevidos e aditivos financeiros desnecessários. Em alguns casos, dinheiro teria sido gasto sem que fosse feito o serviço correspondente.
As auditorias, de conhecimento da prefeitura, ainda não foram avaliadas pelos conselheiros do TCE. Mas algumas já resultaram em representações do Ministério Público de Contas contra as administrações responsáveis pelas obras.
A maioria dos problemas se refere ao Programa de Revitalização Asfáltica, lançado em 2010 e prorrogado sucessivas vezes até 2015. Foram 340 trechos recapeados pela mesma empresa, a Procon Construções, vencedora das licitações comandadas pelo setor de conservação da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Mobilidade Urbana (Smim). Os técnicos do TCE identificaram problemas em ruas que hoje estão cheias de buracos — as mesmas mostradas no teste de qualidade da pavimentação realizado pelo Laboratório de Pavimentação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a pedido do Grupo de Investigação da RBS (GDI), mostrado em série de reportagens iniciadas na quinta-feira (21).
As auditorias apontam também irregularidades em outras obras viárias (túnel e pontes) e em outros projetos de recuperação asfáltica, mais recentes. Confira os problemas com recapeamento identificados pelos auditores do TCE.
Restrição a competidores
Exigir determinada quantidade de atestados técnicos na fase de habilitação, bem como definir quantitativos mínimos e limitar locais/situações específicos para a validade dos atestados fere os Princípios da Isonomia, Razoabilidade e Legalidade
Trecho da auditoria
Em 2010, segundo a auditoria, o edital do programa de revitalização asfáltica tinha exigências desproporcionais de comprovação de capacitação técnica às construtoras. Concorrentes precisavam comprovar experiência em obras bem mais caras do que as da licitação. Na interpretação dos auditores do TCE, isso restringiu a disputa do contrato a grandes construtoras — no caso, a vencedora foi a Procon. Além disso, a Lei de Licitações proíbe a exigência de comprovação de experiência em obras mais caras — isso é considerado uma restrição grave à competição do certame.
Em 2016, a prefeitura lançou os seis editais para licitação de recuperação asfáltica com recursos da Corporação Andina de Fomento (CAF) — a maior obra do tipo nas últimas décadas. Auditoria do TCE identificou também nesses editais cláusulas que restringiriam a competição — uma delas, novamente, é a comprovação de ter feito obras do mesmo porte. Após alerta do TCE, as adequações necessárias foram promovidas pela prefeitura e publicadas no dia 22 de julho de 2016. O TCE admite que a alteração melhorou o caráter competitório, mas não o solucionou porque não houve a republicação dos editais. A prefeitura ressalta que foi publicada "errata" com adequação do certame. Passou a ser aceito o somatório de atestados e a participação de consórcios, o que ampliou o universo de participantes.
Projeto com responsável inabilitado
O encarregado de fazer o projeto básico do programa de revitalização asfáltica foi um engenheiro mecânico com cargo de confiança na antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov), Adriano Borges Gularte. As duas condições são vetadas pela Lei de Licitações — ele teria de ser engenheiro civil e funcionário de carreira. A prefeitura tinha 145 engenheiros civis na época da licitação, sendo 53 só na Smov. Mas o escolhido foi Gularte, que não tinha habilitação técnica. Em sua defesa, a Smov alegou que atos administrativos e executivos de governo não exigem Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). O TCE manteve a crítica.
Pagamento indevido de apoio técnico
Enquanto foi utilizada apenas uma equipe de pavimentação para a execução dos quatro contratos e apenas um engenheiro fiscal designado, constata-se desproporcional disponibilizar oito veículos e oito fiscais para dar apoio técnico à fiscalização
Trecho da auditoria
Foram disponibilizados oito veículos novos ou seminovos e contratados apontadores (técnicos terceirizados) para fiscalizar os serviços. A própria prefeitura deveria fazer isso, de acordo com auditores do TCE. A auditoria ressalta que os boletins de medição listados foram atestados pelo mesmo fiscal, o engenheiro Carlos André dos Santos Matos, servidor da Smov designado para a função nas ordens de início dos contratos. Matos foi cargo de confiança nos governos Fogaça e Fortunati e agora continua, no governo Marchezan, como Supervisor de Conservação de Vias Urbanas da Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade (Smim, ex-Smov).
Mais fiscalização do que obras
Segundo a auditoria do TCE, tudo indica que a empresa Procon teria usado uma única equipe de pavimentação para os quatro contratos que venceu — seções Norte, Sul, Leste e Centro. Assim, a vantagem de dividir o trabalho em quatro teria se esvaído, já que uma só uma equipe trabalhava em todos os lugares. Isso teria causado custos desnecessários com fiscalização. "Ao usar uma só equipe nas obras, esperar-se-ia que a prefeitura diminuísse os gastos com fiscalização...Todavia, o que se vislumbra da análise das tabelas é o oposto", critica a auditoria. Ângelo Borghetti, procurador-adjunto do Ministério Público de Contas (MPC), ressalta que a prefeitura pagava por fiscais em todas as áreas da cidade, mesmo tendo obras em apenas uma:
— Isso ocasionou prejuízo ao erário. Pedimos devolução dos valores referentes aos veículos e fiscais não usados.
Na Seção Sul, por exemplo, teriam sido pagos oito meses de veículo com apoio técnico, sem serviço de asfaltamento realizado. O gasto de R$ 54.585,68 seria passível de restituição ao erário, defendem auditores. Outros 57 boletins de medição atestam o uso de veículo ou de fiscalização em períodos sem qualquer recapeamento na seção. Ao todo, os auditores identificaram R$ 643.844,72 pagos de maneira indevida.
Drible para evitar licitação
O edital da licitação falava em conservação e manutenção, serviços simples. Mas os projetos apresentados pela prefeitura foram de recuperação asfáltica, que é bem mais complexa. Os auditores consideram que isso pode ter sido um artifício jurídico para evitar novas licitações. A prefeitura caracterizou o serviço como "de execução continuada", o que permitiu prorrogar contratos por até 60 meses sem fazer uma nova concorrência. Conforme a auditoria, o problema é que a obra não era continuada (de conservação), mas de recuperação. A Smov argumentou que agiu no interesse público, para não retardar as obras com burocracia. Os técnicos também constataram que a prefeitura omitiu quais seriam as ruas contempladas pelo programa. "Isso deixou aberta a possibilidade de executar os trechos conforme conveniência da Administração Municipal", salientam os fiscais do TCE — conveniência que poderia ser político-eleitoral.
Túnel da Conceição: suspeita de cobrança extra
Conforme auditoria do TCE realizada em 2012, em reforma do Túnel da Conceição alguns serviços de sinalização que poderiam ter sido previstos no edital de início da obra foram postergados, resultando em cobrança-extra via aditivo. O tribunal encara o fato como uma falha de planejamento. "Os termos aditivos foram usados para incluir serviços que não eram o objeto do contrato inicial e que sequer haviam sido previstos no projeto e no orçamento da obra. A ocorrência denota falha de planejamento por parte do município quando da elaboração do projeto básico, ao negligenciar as intervenções nas vias adjacentes e alternativas no principal acesso de Porto Alegre. A falha de planejamento, associada à celebração do termo aditivo, alterou sensivelmente as características do objeto da licitação". A Smov respondeu que alguns problemas de sinalização apareceram após o início das obras e, por isso, não estavam previstos.
Acréscimo de 30% no custo na Ipiranga
Em 2011 a Smov contratou obras de alargamento da Avenida Ipiranga e de uma segunda ponte sobre o Arroio Dilúvio, próximo à Avenida Edvaldo Pereira Paiva. A vencedora do certame foi a Procon Construções — mesma empresa que fez a conservação de centenas de vias nos editais lançados em 2010. O TCE põe sob desconfiança três termos aditivos assinados entre a Procon e a prefeitura. A forma de contratação teria onerado em 30% (ou R$ 21.583,42) os contratos, argumentam técnicos. Foram apontadas também irregularidades menores, como o não envio dos dados de obras ao Sistema de Controle de Obras Públicas (Siscop), o que contraria a lei e dificultou a fiscalização do empreendimento.
Contrapontos
O que diz Carlos André Matos, fiscal das obras auditadas e atual supervisor de Conservação da Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana
Já fizemos as nossas argumentações. Foi tudo respondido. O serviço foi efetivamente realizado. Sobre a questão de veículos e pessoal, eles (empresa) estavam trabalhando para nós e isso foi pago porque eles estavam trabalhando efetivamente, mas o Tribunal de Contas tinha outra visão sobre isso
O que diz o ex-prefeito José Fogaça (PMDB), em cuja gestão, em 2009, foram feitos os contratos
Hoje deputado federal, Fogaça encarregou seu secretário de Gestão na época, Clóvis Magalhães, de responder:
- A licitação é específica de uma pasta, no caso a Smov, e os critérios adotados foram orientados pelo corpo técnico da secretaria. Os termos de referência para contratação do serviço de revitalização asfáltica foram especificados pelo supervisor, à época, ligado diretamente ao secretário da pasta. Além disso, houve também parecer favorável da assessoria jurídica da pasta e posterior homologação pelo secretário da Smov como ordenador de despesas;
- Os critérios, por serem eminentemente técnicos, adotas em concorrência, não podem e não devem ser estabelecidos pelo prefeito. Mas, sim, atender aos princípios da administração pública e da segurança da realização do objeto contratado e da boa gestão dos recursos;
Sobre questões relativas à execução do contrato nos anos 2011, 2012, 2013
- Problemas apontados em 2011, 2012, relacionados à execução da obra, em período posterior ao nosso governo, foram tratadas a partir de 2013, pelo Departamento de Conservação de Vias Urbanas da Smov.
O que diz o ex-prefeito José Fortunati:
"Tudo foi devidamente respondido. É simplesmente apontamento da auditoria. Apresentei minha defesa e a ainda não foi julgado. É simplesmente um apontamento. E é feito antes de serem ouvidas as justificativas, as provas e isso tudo já foi apresentado. Aguardo julgamento e tenho tranquilidade de que fizemos de acordo com a lei".