Quando se mudou para Boston, nos Estados Unidos, há 22 anos, o empresário gaúcho Amauri Tomaz de Bitencourt não fazia ideia da saudade que iria sentir dos tradicionais bailes gaudérios. Logo nos primeiros dias morando no país que escolheu para "buscar uma vida melhor", percebeu que faltava um ingrediente importante neste novo projeto de vida: levar consigo a tradição gaúcha, onde quer que fosse.
Transformou, então, a paixão pelas raízes em um negócio. Além de fundar o CTG 100 Fronteiras com amigos tradicionalistas, passou a levar bandas gauchescas para se apresentar por diferentes cidades norte-americanas. Percebeu que a demanda era muito maior do que imaginava. Hoje, aos 55 anos, além de ser conhecido popularmente como Amauri Gaudério, já contabiliza quase duas décadas dedicadas a conservar a cultura do seu povo com shows que rodam o país:
— O primeiro grupo que eu trouxe foi Os Serranos. Durante o baile, que reuniu mais de mil pessoas, a emoção das pessoas foi tão forte que tinha gente chorando na frente do palco. A gente faz por amor à nossa tradição mesmo, não visando o lucro — conta.
Assim como Amauri, milhares de conterrâneos seus que optaram por viver fora do Rio Grande do Sul vêm conservando, há décadas, o hábito de manter a cultura gaúcha ativa. Seja por meio de associações, comunidades ou até por grupos de WhatsApp, eles fazem questão de encontrar um espaço na agenda para vestir uma pilcha, fazer um mate e papear usando os tradicionais jargões que só quem é daqui entende. Por causa desse sucesso em preservar a cultura para além do Rio Grande do Sul e para homenagear os esforços de quem o faz, o tema dos Festejos Farroupilhas deste ano é Gaúchos sem Fronteiras.
— O objetivo é valorizar os gaúchos que deixaram o Estado para conquistar novas querências, empreendendo, fundando cidades, abrindo novas fronteiras agrícolas e fundando CTGs fora do Estado e do Brasil — explica a presidente do MTG, Gilda Galeazzi.
CTGs trazem a identidade gaúcha pelo mundo
Atualmente, existem mais de 3,7 mil Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) no mundo. Desses, 1,7 mil são no Rio Grande do Sul, 800 em outros Estados brasileiros e 1,2 mil fora do país, cultuando o folclore e os costumes da região por meio da dança, alimentação e esportes. E fazer isso não é tão simples como pode parecer. Para que um CTG seja registrado, ele precisa ser uma entidade com constituição jurídica, com mais de 80 associados, que mantém ativos os departamentos cultural, artístico e campeiro, entre outros. Um dos gaúchos que há mais de três décadas se dedica a isso é o Vandenir de Souza, 57 anos. Ainda nos anos 1980, ele viajou aos Estados Unidos a estudo e permaneceu por lá, se tornando uma referência para os conterrâneos que se mudam ao país norte-americano.
— É interessante porque depois que a gente sai do Rio Grande do Sul, parece que começa a gostar mais de tudo que é de lá. Chimarrão, por exemplo, eu tomava esporadicamente na minha cidade natal, Santo Antônio da Patrulha. Quando cheguei nos Estado Unidos, isso se tornou um hábito quase diário — relembra.
Depois de ajudar a fundar um dos CTGs mais ativos dos Estados Unidos, o Rancho Rio Grande, na Califórnia, Vandenir se mudou para a Flórida e assumiu o cargo de patrão da Confederação Norte-americana do Tradicionalismo Gaúcho. Atualmente, divide as horas de trabalho como empresário com a organização da entidade que foi criada em 2005 para manter os CTGs norte-americanos unidos e em atividade.
Entre as aventuras que relembra com mais orgulho, está uma viagem feita em 2019 que cruzou o país levando a cultura gaúcha para todos os cantos dos Estados Unidos. Chamada Caravana Farroupilha, ela reuniu pessoas de diversos CTGs, além de algumas celebridades gaúchas como o comediante Paulinho Mixaria, que viajaram de motor-home da Flórida à Califórnia, fazendo paradas em diferentes Estados para apresentações bem gauchescas.
— Além dos gaúchos, há muitos brasileiros de outros Estados que moram aqui e que gostam de se juntar aos nossos eventos. Conseguimos reunir americanos, mexicanos, pessoas de vários lugares que são atraídas pelas tradições do Rio Grande do Sul — relembra.
Encontros e chimarrão ajudam a manter a identidade
Além dos gaúchos que se dedicam aos CTGS internacionais, há também aqueles que preferem manter as tradições informalmente. A tradutora porto-alegrense Maria Célia Menezes Oliveira, 48 anos, que há duas décadas vive em Toronto, no Canadá, é um exemplo.
Há alguns anos, reuniu um grupo de gaúchos pra tomar chimarrão em um parque da cidade, no 20 de setembro, e a partir de então decidiram montar um grupo ativo para celebrar as tradições que os unia. Começaram com pequenos encontros voltados à gastronomia, em que serviam carreteiros e galetos, até que decidiram expandir. O chamado Grupo dos Amigos dos Gaúchos passou a organizar bailes que reúnem centenas de pessoas e contam até com um músico profissional. É o paranaense Allan Castro, que se voluntariou a participar cantando músicas gauchescas:
— Nosso grupo é gauchesco, mas tem gente de tudo que é lugar. Além de participantes de diferentes regiões do Brasil, recebemos também portugueses e canadenses que amam nossas festas. Quando colocamos os ingressos à venda, eles esgotam rapidamente.
Além dos bailes, o grupo se reúne também em datas especiais, como Natal, e segue se encontrando nas praças da cidade.
— Existe muita solidão na imigração, e o povo gaúcho espalhado pelo mundo é muito hospitaleiro e acolhedor. A gente divide algumas coisas que só nós compreendemos. Não existe fator geográfico quando se vem a gostar da cultura — conta.
Quem também recorre ao chimarrão para se manter conectada ao tradicionalismo é Luana Pereira de Brito, 31 anos. Natural de Estância Velha, ela vive há quatro anos em Veneza, na Itália, ao lado do marido, Juan Tretto de Brito, 31 anos, e do filho, Pietro, três anos. Logo que chegaram no país, eles contam que estabeleceram uma relação totalmente nova com o velho hábito de tomar um mate no fim do dia.
— No Brasil, a gente tomava eventualmente, mas aqui passamos a tomar todos os dias. Além disso, gostamos de colocar músicas gaúchas para ouvir. Isso nos ajuda a matar a saudade — conta Luana.
Para garantir o fornecimento de erva, eles pesquisaram a cidade toda até encontrar um mercado que vendesse a iguaria. Viraram clientes assíduos:
— Não dá para faltar erva. Esse é um momento tão especial do nosso dia que às vezes ligamos para os familiares no Brasil para compartilhar nosso momento de descanso, saber as novidades, contar sobre nossa rotina.
É assim, juntando uma velha tradição com a tecnologia e a criatividade, que Luana e a família, além de milhares de gaúchos espalhados pelo mundo, se mantêm conectados com a cultura local.