Minha esposa é mineira e teve três choques em sua estada no Rio Grande do Sul:
- o frio, que ela achou muito mais severo do que diziam;
- o verão, que ela considerou muito pior do que o inverno;
- o Acampamento Farroupilha.
Quando a levei para o Acampamento, Beatriz não entendeu um monte de gente morando por duas semanas no parque, aquela fumaceira interminável das chaminés, criando uma neblina quente, e aquele povo cantando músicas tradicionalistas, consumindo inconcebíveis 60 mil quilos de carne por final de semana.
Ela tomou um susto. O que mais lhe chamou a atenção foi a hospitalidade. A possibilidade de entrar em qualquer um dos duzentos piquetes, puxar assunto, ser tratado como da família e acabar convidado para se sentar à mesa e desfrutar da refeição. Tanto que ela, no fim de um almoço entre estranhos íntimos, perguntou para mim: “onde é o caixa?”. Queria pagar a conta. Não assimilava a gratuidade da convivência. Eu ri, e respondi que o caixa era no coração, sob a forma de gratidão.
Nos passeios pelo Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia), ela não sabia bem para onde olhar primeiro. Parecia que não estava acreditando naquilo que enxergava. Parecia que ingressava em algum set cinematográfico, ou um túnel do tempo, onde encontraria Bibiana Terra e Rodrigo Cambará em carne e osso, personagens de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo.
Ficou assustada com o desfile dos cavalos e as tropas de gaúchos pilchados a caráter, com guaiacas na cintura.
Até que se apaixonou pelas novidades. Ria da expressão “na capa da gaita”. Passou a adotá-la para qualquer longa caminhada.
— Estou já na capa da gaita.
Escutou os versos cantados do payador Jayme Caetano Braun, nosso Martín Fierro, nosso Chimango, nosso Andarengo.
Mostrou-se enfeitiçada pelo nosso modo peculiar de fazer repente:
O vento caminhador cantava porque era vento, mas faltava o sentimento que vem do mundo interior e, ouvindo coplas de amor, desde a mais xucra à mais doce, porque era vento adonou-se do canto do payador
Aprendeu a comer costela com a mão, sem nenhum pratinho de apoio, chupando o osso à procura do courinho. Aprendeu a pescar pedaços de picanha e salsichão, dispensando o uso de palitos. Aprendeu a dançar chula. Fez questão de usar o vestido de prenda e rodopiar para se ajoelhar e afundar as anáguas no chão. E conheceu um pouco de nossa história, um pouco de nosso temperamento, o quanto nossa valentia cresce estando juntos.
Minha irmã Carla explicou para ela:
— Somos o único povo no país que comemora ter perdido uma guerra, a mais longa rebelião do período regencial do Brasil, justamente porque tivemos a coragem de lutá-la.
Tanto que o feriado assinala o início da Revolução Farroupilha (20 de setembro de 1835), não o final (1º de março de 1845).
Com tristeza indisfarçável, testemunhamos as cinzas da Chama Crioula. O acampamento encerrou no domingo (22), com o recorde de 2 milhões de visitantes, ultrapassando a maior marca registrada pela concessionária do parque, GAM3 Parks, de 1,5 milhão de pessoas em 2022.
Mas todos gostaríamos que o espírito do assentamento, de traço cordial e cúmplice, seguisse pelo resto do ano.
20 de setembro é o nosso Natal antecipado. A nossa mais profunda liberdade.