Viajo muito devido a palestras e shows. Do Brasil, só falta conhecer o Amapá. Das 27 unidades federativas, careço de um único estado para completar meu quebra-cabeça cultural e geográfico.
Mas eu me sinto caseiro, bicho do mato perto do colega Rodrigo Lopes, nosso correspondente do front, fluente em inglês e espanhol. Seu passaporte é digno da saudosa Glória Maria, é tão folheado quanto o de um embaixador do Itamaraty. Não há espaço para mais carimbos de entradas e saídas nas alfândegas.
O jornalista tem 46 anos e apresenta exatamente 46 destinos internacionais no currículo — 45 países e Antártica. Nem ele acreditou na coincidência quando perguntei quantos foram. Pensou que eu estava fazendo alguma bruxaria.
Repare na lista:
- Alemanha – 4
- Antártica - 1
- Argentina - 4
- Áustria – 1
- Bélgica – 1
- Bolívia – 1
- Camboja – 1
- Canadá - 1
- Catar - 1
- Chile – 2
- Colômbia - 2
- Cuba - 1
- El Salvador – 1
- Emirados Árabes Unidos – 1
- Eslováquia – 1
- Espanha - 1
- Estados Unidos - 7
- França – 5
- Haiti – 3
- Holanda - 2
- Honduras - 1
- Hungria - 1
- Indonésia – 1
- Iraque – 1
- Israel – 2
- Itália – 3
- Jordânia – 2
- Líbano - 2
- Líbia - 1
- Panamá - 1
- Paraguai – 2
- Peru – 2
- Polônia – 1
- Portugal – 2
- Reino Unido - 1
- República Dominicana - 1
- Síria – 2
- Suíça - 1
- Tailândia – 1
- Tunísia - 1
- Turquia - 2
- Ucrânia – 1
- Uruguai – 4
- Vaticano - 3
- Venezuela - 2
- Vietnã – 1
O mais espantoso é que Rodrigo tem medo de avião. Ele sempre acha que vai cair. Só que já embarcou dezenas de vezes. Nunca se curou do seu pavor, da ansiedade, dos calafrios, que o deixam inteiramente atento a qualquer som ou oscilação durante horas de voo. E não estamos falando de trajetos curtos. Para a Indonésia, suportou um dia e meio no céu.
— Minha paixão é maior do que o medo — explica.
Ele não rejeita o sentimento ruim, usa a seu favor como combustível da coragem. O que o põe nos lugares mais perigosos do mundo, nos momentos em que as pessoas mais desejam sair deles.
É seu costume ingressar numa região onde ocorrem aglomerações no movimento contrário, em direção ao êxodo. Ele chega no instante em que a maioria parte. Cobriu dois terremotos (Peru e Haiti), um furacão (Katrina, que devastou Nova Orleans), cinco guerras (Líbano, Israel, Ucrânia, Iraque e a Primavera Árabe na Líbia), três eleições americanas e vários golpes de Estado na América Latina (inclusive foi preso na Venezuela em 2018, no quartel do Palácio Miraflores, com passaporte e celular apreendidos.
Sua adoração começou com esquisitices de comportamento na infância. Enquanto seus colegas colecionavam álbuns de futebol, buscavam figurinhas de jogadores, ele preferia preencher encartes turísticos com bandeiras dos países. Não localizava ninguém para trocar ou fazer bafo. Assim já entendia precocemente o sabor amargo das escolhas: vocação é solidão.
Nos encontros familiares, instigava as visitas a questioná-lo sobre as capitais das nações. Não parava quieto até que algum voluntário se dispusesse a participar do seu Quiz Show particular. É evidente que todos achavam aquele garoto um nerd, um gênio, pois respondia de bate-pronto a capital de Omã: “Masqaṭ!”.
Mas, mesmo sendo alguém calejado, habituado a resistir a cataclismas, a fugir de tiroteios, a ver corpos baleados, jamais imaginou passar para o outro lado do balcão, como vítima de um desastre natural, em seu próprio chão, em sua origem, em seu Rio Grande do Sul. A enchente de maio mudou sua perspectiva.
— Numa cobertura, você se preocupa com sua segurança e se mantém focado no trabalho. Quando você é atingido na sua terra, vida profissional e pessoal se misturam. Não tem como ser imparcial. Eu estava preocupado com os milhares de conterrâneos, com a minha mãe, com a minha esposa (a jornalista Francielly Brites), com os dois gatos (Salem e George), com a evacuação, em socorrer. Pela primeira vez na minha vida, a tragédia falava português. A dor tinha o meu sotaque.