Kelys Hernandez estava cozinhando no barraco em que vive com o marido e os quatros filhos, na tarde de segunda-feira (16), quando ouviu um alarido vindo da rua. Lá fora, perguntando por ela na última viela da Asa Branca, localidade do bairro Sarandi, em Porto Alegre, estava uma das maiores estrelas de Hollywood. Em uma passagem tão rápida como sigilosa pelo Rio Grande do Sul nesta semana, a atriz australiana Cate Blanchett passou 48 horas percorrendo territórios afetados pela enchente que afetou o Estado em 2024.
Embaixadora do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Cate vinha planejando a visita desde julho. Com atuação global de auxílio a comunidades vulneráveis, ela tem especial interesse nos efeitos das mudanças climáticas. Desviando das poças d’água na estreita Rua Farroupilha, queria ouvir de Kelys um relato de como o aluvião de maio havia atingido sua família.
Venezuelena radicada na Capital há cinco anos, Kelys largou as panelas e debruçou-se sobre a portinhola de madeira do alpendre. Diante da loura alta que falava uma língua que lhe era incompreensível, demorou a entender o que se passava.
— Tinha uma tradutora que me explicou. Daí entendi que era uma pessoa importante. Ela queria saber se eu estava em casa no dia da enchente, se saí antes, se fui para um abrigo e como havia sido — conta Kelys.
Aos 34 anos e casada com um compatriota que produz assentos de automóveis na fábrica da GM em Gravataí, Kelys abandonou o lar um dia antes da enchente destruir tudo o que tinha. A família passou dois meses em um abrigo antes de recomeçar a vida.
Conversamos por uns 20 minutos. Ela estava muito interessada. Eu não sei quem ela era, não reconheci, mas meus filhos se emocionaram porque tinha alguém conversando com a gente em inglês.
KELYS HERNANDEZ
Moradora do bairro Sarandi
Mais cedo, Cate havia se reunido com outros integrantes da comunidade venezuelana do Sarandi que realizavam uma confraternização de Natal. Por volta das 12h30min, dois carros ingressaram na Aldeia Infantil SOS Brasil, entidade parceira do Acnur no acompanhamento de 150 famílias de migrantes e refugiados.
Os funcionários haviam sido avisados de que alguém importante do Acnur visitaria a entidade, mas jamais imaginaram que seria uma estrela do cinema, indicada oito vezes aos Oscar e com duas estatuetas douradas em casa. Todos assinaram um termo de sigilo, foram orientados a evitar fotografias e proibidos de publicá-las em redes sociais.
Vestindo macacão azul e tênis, Cate circulou pelo abrigo, brincou com crianças, conversou com os monitores e manteve um encontro mais reservado com os refugiados. Pediu que lhes contassem suas histórias de vida e como haviam sido afetados pela enchente.
No primeiro semestre, quando Cate procurou o Acnur querendo visitar locais impactados por mudanças climáticas, surgiram duas opções. A primeira era Belém, sede da COP30 em 2025 e onde o comissariado mantém um trabalho de acolhimento a indígenas refugiados. Ao cabo o destino acabou sendo o RS em função de o Estado abrigar a terceira maior população refugiada no Brasil, com 43 mil pessoas, e da sucessão de enchentes no último ano.
Jantar no palácio Piratini
Cate desembarcou no aeroporto Salgado Filho por volta das 11h de segunda-feira e apenas trocou de roupa no hotel Art Hotel Transamerica Collection antes de seguir para o Sarandi, onde ficou até as 17h. No início da noite, se dirigiu ao Palácio Piratini para um jantar com o staff do governador Eduardo Leite.
O governo havia sido procurado pelo Acnur há duas semanas com um pedido de agenda com Leite, mas limitou-se a dizer que era uma estrela internacional em visita às regiões afetadas pela enchente. Poucos dias antes do encontro, foi comunicado de que se tratava de Cate Blanchett. Informada de que a atriz era vegana, a cozinha do palácio caprichou em um menu com cogumelos e polenta antecedidos por gaspacho de tomate. Somente no dia foi esclarecido que ela comia de tudo e o chef incluiu um filé mignon com presunto de parma e sálvia no cardápio.
Embora fosse o anfitrião, Leite foi orientado a levar apenas cinco convidados. Escolheu o vice-governador Gabriel Souza e alguns secretários com domínio do inglês, como Raquel Teixeira (Educação), Pedro Capeluppi (Reconstrução), Eduardo Costa (Procuradoria-Geral) e Simone Stülp (Inovação). Lisiane Lemos (Inclusão Digital) foi convidada mas não pode comparecer.
Leite estava participando do balanço de final de ano do governo no Salão Negrinho do Pastoreio quando Cate chegou ao palácio. Com Capeluppi, se dirigiu ao Salão dos Espelhos, onde a comitiva do Acnur os aguardava. Em pé, quebraram o gelo dos cumprimentos iniciais conversando sobre o interesse da atriz pela obra de Clarice Lispector. Cate disse se tratar de uma leitura densa em inglês, característica que Leite ressaltou em português também, inclusive lendo um trecho para a estrela.
Na sequência, o grupo seguiu para o Salão dos Banquetes, onde o jantar se entendeu por duas horas. Sentada ao lado do governador e diante de Capeluppi, Cate fez inúmeras perguntas sobre a enchente, a estratégia de ação do Estado, como era feito o contato com as famílias e seu abrigamento. A atriz contou histórias de refugiados com quem mantém contato nos mais diversos recantos do planeta e manifestou preocupação sobre a agressividade das mudanças climáticas.
— O governador mostrou como montou o Plano Rio Grande para a reconstrução do Estado e a criação de um comitê científico para acompanhar o comportamento do clima. Ela achou muito interessante ter um órgão desse perfil acoplado à administração — relata Capeluppi.
Ao final do jantar, Leite conduziu Cate por um passeio pelo palácio, explicando a história, a arquitetura e detalhes das obras de arte expostas nos salões. O governador tentou fazer uma chamada de vídeo com o marido, Thalis, que estava em São Paulo, mas ele não atendeu. Só mais tarde o médico retornou, ainda a tempo de cumprimentar a atriz. Por volta das 22h30min, o grupo se despediu.
Sobrevoo em Lajeado, Arroio do Meio e Encantado
Às 8h30min de terça-feira (17), Cate já estava no aeroporto Salgado Filho, pronta para embarcar em um helicóptero da Brigada Militar rumo ao Vale do Taquari. Ciceroneada pelo chefe da Casa Militar e da Defesa Civil, coronel Luciano Boeira, ela sobrevoou os municípios de Lajeado, Arroio do Meio e Encantado. Voando baixo e próximo às áreas ribeirinhas, Boeira mostrou a devastação causada por três enchentes sucessivas na região, desde setembro de 2023.
Ela ficou bastante impressionada. Quis saber quantas pessoas haviam sido impactadas e se ainda continuavam em abrigos.
CORONEL LUCIANO BOEIRA
Chefe da Casa Militar e da Defesa Civil
Cate desembarcou em Lajeado e se reuniu com uma comunidade haitiana na sede do Ministério Público. Depois, seguiu de carro até Cruzeiro do Sul, onde circulou pela localidade de Passo da Estrela, onde 600 casas foram dizimadas pela força das águas. À tarde, retornou de carro para Porto Alegre.
Capaz de dar vida na tela grande a personagens da ficção, como a elfa Galadriel na trilogia O Senhor dos Anéis ou reencarnar personalidades históricas como a Rainha Elizabeth I e Bob Dylan, Cate Blanchett passou pelo Rio Grande do Sul praticamente anônima. Sem badalação e nenhuma afetação, mais ouviu do que falou. Ao embarcar de volta para Londres, na manhã de quarta-feira (18), afiançou seu prestígio como alerta de que nossa tragédia particular é exemplo de um drama global de assustadora recorrência e que exige atenção cada vez maior dos governantes.