Atravessando boa parte de São Leopoldo e pegando um pedaço de Novo Hamburgo, o sistema de proteção contra cheias do Rio dos Sinos, que totaliza 21 quilômetros de diques, foi superado pela enchente que assola o Estado, com a água ultrapassando a cota de inundação. E, segundo os prefeitos das duas cidades, os recursos funcionaram dentro de sua capacidade, porém, o aguaceiro recente, superior ao que a engenharia tinha previsto décadas atrás, subjugou a estrutura.
Além disso, o sistema, que serve para dar proteção para cerca de 150 mil pessoas que vivem no entorno do rio nos dois municípios da Região Metropolitana, está no meio de um impasse. A obra, que foi realizada entre as décadas de 1970 e 1980, pelo governo federal, deveria ter a sua manutenção efetuada pela União, segundo o Ministério Público Federal (MPF). No entendimento do promotor da República Celso Tres, o mecanismo constitui Política Pública de Prevenção contra Desastres (Lei nº 12.608/2012) e, por isso, cabe à União a responsabilidade da operação do sistema.
São Leopoldo ajuizou ação na Justiça
Ary Vanazzi, prefeito de São Leopoldo entre os anos de 2005 e 2012 e de 2017 até agora, inclusive, ajuizou uma ação na Justiça pedindo o pagamento de uma quarta e última parcela faltante do mais recente dos convênios firmados com a União, em 2009. Segundo o chefe do Executivo da cidade, a partir de 2012, não houve mais ajuda por parte do governo federal, o que deixou a manutenção do sistema totalmente sob responsabilidade do município:
— Era um convênio que o município tinha de manutenção do sistema. Dragagem do rio, limpeza de vala, desmatamento. Era um convênio permanente, que ia se renovando. O convênio foi rompido em 2015. A última parcela veio em 2012 e, depois, não vieram mais os recursos. E, dentro dos que estavam previstos, faltavam R$ 5 milhões. Eles não me repassaram. Então, eu entrei na Justiça para cobrar esse dinheiro.
Mesmo assim, de acordo com o prefeito, todas as casas de bombas, bem como os diques, estavam em "perfeitas condições", por conta da manutenção feita por São Leopoldo. Assim, além do valor faltante da última prestação do convênio, a prefeitura ainda pede ressarcimento pela operação do sistema nos últimos cinco anos — o que gira em torno de R$ 12,8 milhões. Os pedidos de Vanazzi, porém, foram negados, mesmo com o parecer favorável do MPF, pela 1ª Vara Federal de Novo Hamburgo, em 2019.
Na decisão, o magistrado afirmou que a responsabilidade pela manutenção do sistema era do município, uma vez que a benfeitoria não constituiria bem da União. Além disso, negou o pedido para que o governo federal fosse obrigado a liberar os recursos pendentes, sob a justificativa de falta de prestação de contas das parcelas repassadas anteriormente — tal argumento foi contestado pelo MPF no processo.
— Disseram que a prestação de contas estava irregular. Na realidade, a gente explicou que houve um erro no exame técnico. Os técnicos vinham a cada um ano e meio, dois anos, quando a própria enchente havia renovado o problema. Não é que não havia feito nada, mas a enchente vem e destrói o que foi feito, por isso, é preciso de manutenção. Tanto é verdade que o Tribunal de Contas da União reconheceu que estava correto e absolveu o Ary Vanazzi de qualquer irregularidade, comprovado que não houve nenhum desvio — salienta Celso Tres.
Desta forma, de acordo com promotor da República, em 2020, foi feita uma apelação junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), e desde então MPF está pressionando o órgão para julgar a ação. A ideia, assim, é tentar levar para o município o restante do valor acordado no convênio e, também, o ressarcimento pela manutenção feita no local de 2017 até agora, o qual foi custeado pela prefeitura.
— Com a obra concluída e com a manutenção devida, sem dúvida, os efeitos da enchente seriam menores. Sem manutenção federal, a manutenção não é a adequada — salienta Tres.
Não mudaria muita coisa
Apesar do argumento utilizado pelo promotor, a atual enchente não seria muito diferente com o valor faltante do último convênio firmado entre União e município — este seria, originalmente, destinado para a construção de uma nova casa de bombas, na região nordeste ne São Leopoldo.
O hidrólogo Fernando Fan, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, explica que a casa de bombas, por exemplo, serve para tirar a água de dentro da cidade para fora e, como a enchente veio do rio, não teria grande utilidade — afinal, ela não é uma barreira motorizada.
— Assumindo a hipótese de que o dique está todo bem construído, bem executado e nivelado, o fato de a gente estar vendo a água passar por cima mostrou que os níveis que chegaram a São Leopoldo superaram os valores de projeto daquela obra. E, nisto, não haveria nada que a gente pudesse fazer, porque simplesmente o valor de vazão que aconteceu foi acima do valor adotado para a construção deste projeto — salienta Fan.
Antonio Geske, geólogo e diretor de Controle de Cheias de São Leopoldo, conta que o convênio firmado com a prefeitura, que totalizava mais de R$ 24 milhões, foi encerrado pela União em 2015. O governo federal, através do então Ministério da Integração Nacional, havia entendido que o serviço estava concluído, mesmo sem pagar a última parcela, de R$ 5 milhões.
— As obras foram feitas, parte delas, em terras da União, que foram desapropriadas. Então, nós temos aqui, em São Leopoldo, um sistema de diques que se encontra construído em terras que são de propriedade da União, que quer repassá-las, em cessão de uso, para a prefeitura, que não definiu ainda. A prefeitura entende que a União é responsável pelo sistema que ela fez, o que, de fato, está na Constituição, uma vez que o governo federal é responsável por catástrofes — detalha Geske.
De acordo com o geólogo, a partir de 2015, com o abandono da União ao sistema, as manutenções tiveram que ser assumidas, então, pela Prefeitura de São Leopoldo, de maneira obrigatória e antecipada.
— Existia uma cláusula, no último convênio, dizendo que a prefeitura, após o encerramento, assumiria a responsabilidade de operação e manutenção do sistema. Porém, o convênio foi finalizado sem o repasse de uma parcela. Então, a prefeitura entende que a União ainda deve algo. O sistema não estava completo — aponta o diretor. — Mas, mesmo com esta parcela, não mudaria o resultado da enchente. No máximo, amenizaria.
Vale ressaltar que todo o sistema de contenção, formado pelos diques e pelas casas de bombas — que são cinco, com 21 bombas, em São Leopoldo, e uma, com seis bombas, em Novo Hamburgo, foi pensado para suportar uma enchente tão grande quanto a de 1941. Desta forma, Geske explica, todo o sistema deverá ser repensado para o novo normal, a partir desta cheia recente.
O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional foi procurado pela reportagem entre terça (15) e quarta-feira (16), mas, até o fechamento da matéria, não disponibilizou um porta-voz para dar o ponto de vista da União.
A situação de Novo Hamburgo
De acordo com a prefeita da cidade vizinha a São Leopoldo, Fátima Daudt, nunca havia ocorrido o transbordo do rio pelo dique desde os anos 1970. Ela ressaltou que, à época da construção do sistema de proteção, os engenheiros colocaram uma margem de um metro acima da cota da inundação de 1941 por lá — ou seja, segundo ela, o bairro Santo Afonso estaria protegido até 9,5m, mas não foi o suficiente.
— Na sexta-feira (3) do transbordamento, a última medida que conseguimos fazer na régua foi de 9,73m. Depois disso, não conseguimos mais chegar nela devido À correnteza. E o rio transbordou durante toda a sua extensão em Novo Hamburgo — detalha Fátima. — O dique só não protegeu mais porque foi um volume de água nunca antes visto.
Segundo ela, mesmo com Novo Hamburgo fazendo as manutenções no dique e, também, na casa de bombas que está sob sua jurisdição, para que funcionem até o seu limite — como ocorreu nas últimas semanas —, tal sistema ainda pertence à União e está sob responsabilidade do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.
— Este dique tem um responsável. As cidades estavam fazendo as manutenções e cuidando, mas, agora, com o problema que ocorreu, estou buscando em Brasília para que se tenha esse olhar do Ministério para o dique, que está atendendo duas cidades — reforça Fátima.
De acordo com a procuradora-geral de Novo Hamburgo, Fernanda Luft, o sistema, quando executado, nos anos 1970, também foi construído em vários locais. E, naquela época, quando a União concluía as obras, passava a construção para o patrimônio dos municípios — porém, tal movimento não aconteceu com as duas cidades vizinhas da Região Metropolitana.
— Então, tudo o que ocorre com o sistema contra cheias é patrimônio da União, não nosso — detalha a procuradora-geral. — Não sei por que a União não passou todo o sistema para os municípios, como ocorreu em outras cidades, mas não passou.
A história do sistema contra cheias
Depois da enchente de 1941 — que foi a maior da história do Estado, até maio de 2024 —, medidas foram tomadas para conter o avanço das águas sobre as cidades que sofreram com a cheia. São Leopoldo e Novo Hamburgo, por exemplo, constantemente alagadas pelo Rio dos Sinos, através do extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), foram contempladas com a construção de seu Sistema de Proteção Contra as Cheias do Rio dos Sinos, para evitar novos danos às cidades.
A obra foi iniciada em 1974, após estudos e recursos do governo federal com, também, financiamento do Banco KFW, da Alemanha. A construção, então, seguiu até a extinção da DNOS, durante do governo Fernando Collor, em 1990, levando à paralisação dos trabalhos — que estavam bem avançados, com cerca de 93% concluídos, faltando apenas alguns quilômetros de diques nas partes mais altas de São Leopoldo. Os pontos mais cruciais estavam prontos, aponta Gerske.
Já no governo de Fernando Henrique Cardoso, estas obras que foram paradas pela extinção das autarquias federais, então, foram concluídas por meio de convênios — desta forma, alinhado com o Ministério do Planejamento e Orçamento, em 1995, o sistema de proteção contra cheias começou a sua conclusão, com repasses feitos à prefeitura, que coordenou a finalização. O que, de fato, ocorreu nos anos seguintes, já com os convênios sendo transferidos para o Ministério da Integração Nacional, em 1999, mediante Termo de Sub-Rogação (nº 021/1999), que se tornou Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, em 2023.