Por Léo Gerchmann
Jornalista e autor de livros como “Coligay, Tricolor e de Todas as Cores” (Libretos, 2014)
Este dia 26 marca momento alto da Justiça brasileira. Há 20 anos, nessa data, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou diretrizes antirracistas cada vez mais relevantes, na medida em que o nazismo mostra sua carranca despudoradamente. Primeiro, expliquemos: raça, entre humanos, é conceito sociológico, e diferenciar homens por esse critério é convenção, ironicamente originada na abominação que é o racismo. Biologicamente, somos uma única raça, a raça humana. Logo, se estamos falando de conceito sociológico, antissemitismo é um dos tipos de racismo. Pode não ser pela cor da pele, mas é pela etnia. De forma complementar, “liberdade de expressão” é pilar civilizatório, mas que precisa chegar ao seu limite quando se torna crime. Então, falemos de quando a Justiça brasileira condenou o nazista Siegfried Ellwanger por ser aquilo que ele era: nazista – e esse julgamento, que estabeleceu o “trânsito em julgado” (quando não cabem recursos), criou precedentes.
Duas frentes atuaram nessa vitória. Houve a Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS) e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com a excepcional figura humana de Jair Krischke à frente, mas ainda com Mauro Nadvorny e Carlos Josias Menna de Oliveira (o advogado), além de Luís Milman e Luiz Francisco Corrêa Barbosa. Wilson Muller, na polícia, também teve papel destacado nesse episódio histórico.
Entre 1989 e 2003, consolidou-se o arcabouço legal para se definir antissemitismo como “discriminação” e “preconceito”. O ex-diretor jurídico e ex-presidente da FIRS Helio Sant’Anna conta que, com o apoio do deputado Ibsen Pinheiro, criou-se a tipificação do antissemitismo. A definição passou a ser “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Ellwanger foi denunciado pelo que prevê o artigo 20 da Lei 8081. Sant’Anna lembra da expressão do réu, que “olhava com ódio” os denunciantes, muitos deles judeus.
O réu se defendia alegando que exercera o direito à liberdade de expressão, tema atual nesta segunda década do século 21. Na ocasião, o assunto já fomentava intensos debates jurídicos.
A condenação pela 3ª Câmara do Tribunal de Justiça (segunda instância) ocorreu por 3 a 0 em 1996. Era de dois anos de prisão, mas foi convertida, mediante suspensão condicional da pena, em quatro anos de serviços comunitários. Ellwanger recorreu. Passou a alegar que judeu não é raça e que não cometera racismo. O detalhe é que, enfim, raça em tese não existe (mas o racismo, pela ignorância humana, sim). A alegação era inócua. E veio o ano de 2003, histórico. O STF negou, em 26 de junho, o derradeiro habeas corpus impetrado por Ellwanger. Na ocasião, o filósofo e jornalista Luis Milman, do MJDH, comentou:
– O caso é ímpar, pela jurisprudência que fixará para futuras abordagens do preconceito racial.
O STF, disse ele, consagrou interpretação de grande profundidade jurídico-humanista.
Em resumo, Ellwanger foi julgado por racismo antissemita em 1989, a partir de ação interposta pelo Movimento Popular Antirracismo (Mopar), do MJDH, com envolvimento da FIRS na fase judicial. Condenado no TJ, o réu recorreu ao STF, que, em março de 2001, manteve a decisão. O julgamento histórico de 2003 teve como motivo os habeas impetrados por Ellwanger no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF. Ellwanger alegou ter sido condenado por crime de preconceito e não de racismo, porque seus ataques se dirigem aos judeus, e judeus não seriam raça. Caso essa tese fosse acatada, a pena perderia a imprescritibilidade, e o editor ficaria livre. Seguia Luis Milman, na ocasião:
– Não importa detalhar o mérito da alegação falaciosa da defesa do editor. Interessa informar sobre sua motivação escapista e chamar a atenção para a sua significação social e política. (…) Tratou-se de decidir se o crime que cometeu é racismo. Hoje saudamos a decisão histórica (…) de justo enfoque sobre direitos individuais e sociais numa nação democrática.
O julgamento do STF fixou parâmetros sobre a natureza do racismo e para o repúdio jurídico a qualquer forma de preconceito racial. A decisão projetou luzes humanistas para desfazer confusões. Dani Rudinicki, professor de Direito e conselheiro do MJDH, define a vitória como “marco no Direito brasileiro”. Acrescenta:
– Até hoje o STF define o julgamento como um dos mais exemplares da História”.
Krischke, gigante na defesa dos direitos humanos, cuja história de vida se confunde com a do MJDH, usa a mesma expressão, “marco”, para definir a decisão.
– Foram 15 anos de reuniões noite adentro. Foi uma grande conquista. Tinha quem falasse em “liberdade de expressão”. Mas era racismo, era a defesa da supremacia ariana sobre os judeus. A Constituição defende a liberdade de expressão, mas tem uma vírgula ali: essa liberdade vai até onde se viole os direitos defendidos pela própria Constituição, e, claro, era o caso.