A composição se movimenta lentamente sobre os trilhos, alterando a própria paisagem à medida em que o fim da linha leva a terra ao encontro do mar. Aos poucos, ficam para trás os bois e pássaros espalhados pelas planícies do pampa e o cenário bucólico ganha ares industriais, numa sucessão metálica de armazéns, guindastes, caminhões e contêineres. Lá atrás, ancorados no horizonte sobre a água, navios com até 335 metros de comprimento e 45 metros de altura carregam 35% de toda a riqueza produzida no Rio Grande do Sul.
Maior complexo logístico do Estado e quarto principal do país, o porto de Rio Grande movimentou 42 milhões de toneladas em 2022. São 27 berços operacionais que receberam 2.815 embarcações no ano passado. De longe, é um empreendimento que reúne R$ 9,4 bilhões em investimentos e 11.732 empregos diretos. De perto, é um colossal emaranhado de gente, concreto e aço que dá fluxo à economia, encurtando distâncias, gerando negócios e modernizando uma beira-mar que deu origem ao mais antigo município gaúcho.
Atracadouro há quase 300 anos, a extensa estrutura incrustrada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico está na gênese do porto de Rio Grande. Fundada em 1737, a pequena vila de antanho surgiu da preocupação da Coroa Portuguesa com invasões marítimas espanholas. Acossada pelos rivais instalados em Colônia do Sacramento, a realeza tentava a qualquer custo formar uma tropa de resistência. “Toda a pessoa que quiser ir em defesa da campanha do Rio Grande fará seus os saques do que em guerra tão justa tomar ao inimigo, tanto de cavalgaduras e boiadas como de ouro e prata”, prometia em comunicado oficial.
Ao mesmo tempo, foi enviado à região um dos mais notáveis estrategistas militares lisboetas, o brigadeiro José da Silva Paes. Em 19 de fevereiro de 1737 – data que passou à história como de fundação do município –, Silva Paes desembarcou em terra firme acompanhado de 254 arcabuzeiros e dragões, com a missão de guarnecer o território. Sua façanha inaugural, contudo, foi sobreviver à “barra diabólica”, como viria a ser conhecida a temida entrada marítima daquela ponta leste da futura Província de São Pedro. As fortes correntezas do canal, somada à mobilidade dos bancos de areia, dificultavam o acesso, legando ao local o epíteto de cemitério de navios.
Tamanha dificuldade logística só foi vencida em 1911, com a construção dos molhes da barra, dois longos braços de pedra que, estendidos mar adentro, criaram condições seguras para o movimento constante de embarcações. Desde 1846, contudo, já funcionava na cidade a Praticagem da Barra, serviço especializado na condução dos navios de alto-mar até o cais.
Criada no país a partir da chegada da família real portuguesa, em 1808, a atividade é indispensável em qualquer porto do mundo para evitar acidentes. Com conhecimento profundo das condições específicas e do trajeto seguro para a chegada e saída das embarcações a qualquer hora do dia e da noite, o prático é a figura humana essencial nas operações portuárias. Não à toa, o salário raramente fica abaixo de R$ 100 mil.
No Rio Grande, há 23 práticos ativos atualmente. Trabalhando em rodízio por sistema de plantões, eles são levados de lancha 20 quilômetros mar adentro e, com o navio sempre em movimento, sobem 10 metros por uma escada de corda até o convés. A partir dali, o prático assume o comando por até quatro horas — tempo de deslocamento do ponto de embarque até o último berço do cais. Nesse período, é ele quem dita as diretrizes de navegação, priorizando sempre a orientação visual, ainda que subsidiado pelos equipamentos e o aparato tecnológico do navio.
— Nosso principal método é a navegação visual, até pelo conhecimento da região. A dificuldade é a natureza severa, a correnteza, as ondas, o vento e a cerração. Não temos acidente grave há muito tempo, mas é uma tensão constante. Diferente de um avião, no qual uma ação de risco se dá em segundos, no navio a gente percebe com 15 minutos de antecedência se as coisas estão indo mal. É um longo tempo de agonia — comenta o diretor-presidente da Praticagem da Barra, Guido Cajaty, que em 14 anos de carreira já conduziu 4,6 mil embarcações no Rio Grande.
Para além da destreza dos práticos, um dos maiores desafios à movimentação no porto é o constante assoreamento do canal. Por abrigar a foz da Lagoa dos Patos, o local é um constante desaguadouro dos sedimentos no oceano, diminuindo a profundidade e dificultando o trânsito de navios maiores ou mais pesados à medida que se aproximam da cidade. Enquanto no Terminal de Contêineres (Tecon), o primeiro na saída para o mar, o calado é de 15 metros de profundidade, no cais público, no extremo oposto, o espaço para navegação abaixo da linha d’água é de apenas 9m45cm.
Diferente de um avião, no qual uma ação de risco se dá em segundos, no navio a gente percebe com 15 minutos de antecedência se as coisas estão indo mal. É um longo tempo de agonia.
GUIDO CAJATY
Diretor-presidente da Praticagem da Barra
Foi para manter o potencial de negócios que a Portos RS, empresa do governo do Estado, investiu R$ 104 milhões em uma dragagem no ano passado. Durante três meses, duas dragas retiraram 2,85 milhões de metros cúbicos de resíduos do canal de acesso. A operação deve ser repetida este ano, com o mesmo volume de investimento. Criada em 2022 para gerir os portos de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas, a empresa tem 566 colaboradores e fatura R$ 200 milhões anuais com a cobrança de tarifas portuárias. No balanço do ano passado, registrou superávit de R$ 40 milhões.
— Investimos R$ 140 milhões em 2022, mas temos uma demanda reprimida de investimentos. Afinal, Rio Grande movimenta 91% da carga portuária gaúcha. Precisamos de mais três dragagens para deixar tudo em perfeitas condições — afirma João Alberto Gonçalves Jr., diretor de Gestão, Administrativo e Financeiro da Portos RS.
Conforme dados divulgados nesta semana pela Portos RS, o porto de Rio Grande teve de janeiro a março de 2023 o melhor primeiro trimestre da história. O terminal movimentou 8.995.711 toneladas durante o período, 17.680 toneladas a mais do que no primeiro trimestre do ano passado. O mês com maior movimentação foi março, quando passaram pelo cais público e pelos terminais privados 3.350.038 toneladas.