Do cotidiano laboral marcado pela ausência de tudo o que era básico, um dos trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão em Uruguaiana, no dia 10 de março, em lavouras de arroz, narra um episódio que deixou marcas: o lançamento, em duas ocasiões, de agrotóxicos de uma aeronave agrícola sobre a plantação, enquanto trabalhavam no solo. Uma chuva de produto químico recaiu sobre a equipe de 20 pessoas que atuava em terra, sem nenhum equipamento de proteção individual, no corte do arroz vermelho, espécie invasora que cresce mais do que o grão cultivado.
— Foram passar veneno na lavoura e jogaram em nós. De avião. Estávamos trabalhando, e jogaram em cima. Com a minha equipe, ocorreu duas vezes. Dos 20, uns 10 ficaram doentes. Tiveram feridas, saíram bolhas nos braços, dor de garganta e de cabeça — conta o trabalhador resgatado na Fronteira Oeste, cuja identidade é preservada por motivo de segurança.
O trabalhador, localizado e ouvido por GZH, conta que o primeiro episódio de chuva de agrotóxico foi relatado ao recrutador, a quem chamavam de "empreiteiro", e ao agrônomo que fiscalizava o trabalho na plantação.
— Falaram que não iria mais acontecer, mas, uma semana depois, aconteceu de novo — comenta.
O homem trabalhou por cerca de 45 dias na fazenda São Joaquim, uma das duas em que 82 pessoas, incluindo 11 menores de 18 anos, foram resgatadas em situação análoga à escravidão, em operação conjunta entre Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF). A outra propriedade envolvida é a Santa Adelaide.
O resgatado conta que soube do trabalho por um sobrinho, que, por sua vez, tinha recebido o convite de outro morador do bairro deles em Uruguaiana. Era tudo de boca em boca. Eles tinham como referência para conseguir uma vaga o homem a quem chamavam de "empreiteiro".
— Empreiteiro era o senhor que conseguia serviço para todos — narra.
Depois de inserido na rotina da fazenda, conta que passou a ser incentivado pelo "empreiteiro" a chamar mais pessoas do seu bairro para o trabalho, com o objetivo de acelerar o corte do arroz vermelho.
— O empreiteiro ganhava por pessoa. Quanto mais pessoas eram levadas, mais ele ganhava. É o senhor que foi preso. Ele pedia que eu levasse mais gente — conta o rapaz.
No dia da operação, um homem apontado como aliciador da mão de obra reduzida à condição análoga à escravidão foi preso em flagrante. O ato foi homologado pela Justiça Federal, que concedeu liberdade provisória mediante pagamento de fiança e cumprimento de outras obrigações. Os órgãos envolvidos na operação não revelam o nome do detido nem dos produtores rurais e da empresa de sementes sob suspeita de responsabilidade pelos fatos para preservar a investigação.
O resgatado conta que o "empreiteiro" não comparecia à lavoura. Os trabalhadores pegavam uma van nas suas regiões de residência às 5h. O veículo os levava em seguida até a frente de uma residência que seria do aliciador, onde eram embarcados em um ônibus superlotado rumo às lavouras.
— Não tenho noção se ele tem empresa (de serviços terceirizados). Não aparentava ter empresa nenhuma. Parecia uma pessoa simples. Onde ele sempre estava, era uma casinha simples — narra o resgatado.
Rotina
Os homens chegavam pouco antes das 7h nas plantações e começavam o corte do arroz vermelho, o que prosseguia até as 11h. Eles tinham de levar a comida e a água de casa. Como não havia local adequado para acondicionar, deixavam em mochilas ou sacolas debaixo de árvores.
— A comida estragava por causa do mormaço do sol. Volta e meia tinha alguém sem alimento. A gente se dividia para não deixar um companheiro com fome. Teve quem comeu comida azeda. Eu mesmo, duas vezes. Não tinha nada mais o que comer. Deu um mal-estar enorme, principalmente à noite — conta.
Sobre a água, ele recorda:
— Se acabasse, ficava com sede. Levávamos de casa e, pela manhã, ficava gelada. À tarde, parecia que tinha sido esquentada no fogão. A gente falava que era água para mate.
O horário de almoço era das 11h às 13h, mas não havia onde repousar ou sequer banheiro. Buscar árvores para qualquer necessidade era a única opção. Depois do intervalo, o labor seguia até as 17h, sob as ordens de um agrônomo que pedia sempre para acelerar o ritmo, mas que não andava armado. Tampouco fazia ameaças. O resgatado não sabe dizer para quem o agrônomo trabalhava.
— O arroz vermelho é mais destacado na lavoura. Dá para ver, por causa do tamanho. Ele é maior. A gente ia até ele, agarrava o cacho e cortava rente ao chão para não brotar mais e não ser colhido pela máquina — relata.
Esse trabalho era feito, em geral, com facas de serra levadas pelos próprios trabalhadores. Não eram fornecidas luvas ou botas. Havia quem trabalhasse de pés descalços. O homem ouvido por GZH confirma uma das histórias narradas por outros resgatados: um menor que trabalhava descalço foi acertado acidentalmente pelo ceifar de um dos poucos que atuava de facão. Sofreu um corte profundo no pé, mas não foi levado ao hospital. Amarraram-lhe um pano em volta da região do talho. E seguiu na lavoura até o final do dia.
O resgatado diz que os recrutados de outras cidades da Fronteira Oeste ficavam alojados em um galpão.
— Nunca vi esse galpão, mas o pessoal comentava que era bem ruim. Não tinha cama nem banheiro. E ficavam com os venenos (agrotóxicos) na volta deles. O cheiro era forte — afirma.
O homem conta que acabou aceitando o serviço pela necessidade de sustentar a família. Agora, diz ter maior compreensão dos seus direitos básicos. Ele lamenta que, em Uruguaiana, esteja "difícil" conseguir emprego na zona urbana. Diz que as opções costumam aparecer no campo, em lavouras de arroz ou construção de cercas.
— Agradeço a Deus todos os dias pelo pessoal que nos ajudou (PF, MPT e MTE). Não quero mais passar por uma situação dessas, de serviços escravos. Era um negócio desumano. Foi uma lição. Eu só quero que nos ajudem. Que tudo isso venha de forma positiva para nós — declara.
Os resgatados receberão três meses de seguro-desemprego e as verbas rescisórias, mas este segundo direito ainda depende da identificação dos responsáveis pelas lavouras, o que está em investigação pelas autoridades.
Os órgãos que participaram da operação classificaram o labor nas propriedades como análogo à escravidão devido à condição degradante de trabalho, o que é previsto no artigo 149 do Código Penal. A pena é de dois a oito anos de reclusão e pode ser ampliada em função da presença de menores de 18 anos, um agravante.
O homem ouvido pela reportagem diz que, até o momento, não foi procurado por nenhuma equipe de assistência social do município ou do governo do Rio Grande do Sul para encaminhamento a novo emprego ou qualquer outra ação de acolhimento.