O Ministério da Saúde investiga denúncias de desvio de remédios destinados aos yanomamis para garimpeiros. Em ofício do último dia 18, a Fiocruz relata ter recebido a informação de que medicamentos para malária estão sendo vendidos por mineradores irregulares perto da reserva indígena no meio da Amazônia, em Roraima.
"Tendo Farmanguinhos entregue toda a produção ao Ministério da Saúde (diz a Fiocruz em referência ao remédio artesunato + mefloquina) vimos a necessidade de informar-lhes a fim de que medidas possam ser tomadas para que o rastreio da distribuição desse medicamento possa ser feito e apurado o fato relatado", diz o documento.
Profissionais de saúde que atuaram no atendimento a indígenas nos últimos anos também fizeram relatos semelhantes à reportagem.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já mandou investigar a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro por omissões e suspeita de genocídio dos povos indígenas, além do descumprimento de decisões judiciais que determinavam o reforço nas políticas de atenção a essas comunidades.
Os garimpeiros saem de Boa Vista em direção ao garimpo com os medicamentos em mãos para vender para os que ficaram em campo, segundo afirmou um enfermeiro que trabalhou por oito anos na terra indígena Yanomami. A estimativa é de que haja cerca de 20 mil garimpeiros na reserva - o número explodiu nos últimos anos.
Segundo ele, que prefere não se identificar, os desvios de caixas do produto já ocorriam na área de logística da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde. No transporte dos lotes até a reserva, também são relatados problemas.
— Durante o translado na aeronave, o medicamento some — disse à reportagem outro técnico que já teve passagem pela Sesai.
Na reserva, os profissionais da saúde, por medo, acabam também atendendo garimpeiros. Isso agrava a falta de remédios e a sobrecarga de trabalho. Grupos ligados à mineração ilegal dominam áreas dentro da reserva, incluindo pistas de pouso e até uma unidade de saúde.
— Ocorre a troca de remédio por ouro — relatou Junior Hekurari, do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).
A falta de medicamentos, bem como acusações de servidores que negociam com garimpeiros por ouro, já haviam sido levantadas em audiência pública, da Câmara dos Deputados, em junho de 2022.
Após questionamentos da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), que presidiu a comissão, Paulo Teixeira de Souza Oliveira, delegado da Polícia Federal (PF), que representou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, disse que "esse crime de comércio de ouro, cometido supostamente por servidores, em troca de comida e vacina" está sendo investigado.
— A informação da nossa Superintendência de Roraima é que existe um inquérito aberto. Esse fato foi noticiado pela mídia e esse inquérito está em andamento. É claro que vamos preservar o sigilo até mesmo em interesse do resultado útil da investigação. Mas, sim, os fatos estão sendo apurados — disse o delegado à época.
Questionada pela reportagem, a PF não respondeu até a publicação desta matéria. Também não foi obtido contato com Joenia, que hoje preside a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A reportagem também tentou contato com o novo secretário da Sesai, Weibe Tapeba, e com o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, da gestão Bolsonaro, mas não obteve retorno.
Nas redes sociais, Bolsonaro disse que a emergência Yanomami é uma "farsa da esquerda" e afirmou que a saúde indígena foi uma das prioridades em seu governo, destacando a atuação durante a pandemia da covid-19.
Indicações políticas prejudicam trabalho, dizem servidores
Os servidores relataram que a saúde indígena tem dificuldades "naturais". Não se espera que os indígenas se desloquem até as unidades básicas de saúde para atendimento, o que exige busca ativa dos profissionais da saúde, em terrenos pouco favoráveis e no meio da floresta.
No Distrito Sanitário Yanomami, relatam, os profissionais muitas vezes ficam ilhados dentro do posto. Eles contam que os yanomami são um povo guerreiro, e conflitos entre os próprios indígenas podem ser bastante violentos, o que encurrala os funcionários da saúde. Somado a isso, há o medo dos invasores e dos nativos cooptados para trabalhar no garimpo, que têm armas de fogo.
— Tem crianças e adolescentes armados — declarou um dos profissionais, que não quis ser identificado.
Para os servidores, um dos principais gargalos é a gestão. Embora o cargo de coordenador sanitário, por exemplo, de um distrito exija expertise em administração, saúde, política e do povo com o qual se vai trabalhar, basta uma indicação para ocupar a vaga, o que, na visão deles, deixa que pessoas pouco qualificadas assumirem um posto de extremamente importante para que a assistência aos indígenas funcione de acordo com o esperado.