— Não me mata, profe. Não me mata!
O pedido do aluno autista de seis anos ocorreu depois de a professora usar um pano para cobrir o rosto e a boca dele, que passava por uma crise na sala de aula. Os detalhes do que ocorreu e da forma como a docente agiu vieram à tona por relato feito por ela mesma, em áudio enviado em um grupo de WhatsApp da educação infantil do Colégio Romano Senhor Bom Jesus, em Porto Alegre.
— Ele surtou hoje, gurias, só porque eu falei que o casaco não era dele, era de um outro colega, nós tava (sic) voltando do pátio, guardando os casacos na mochila, e ele veio com tudo para cima de mim, deu um puxão na minha roupa, cuspiu horrores, que vocês não têm noção. Aí, eu tinha pego antes a toalhinha de lanche dele e a lancheira, sabe o que que eu fiz, gurias? Eu me descontrolei de um jeito assim, ó, não é nem descontrole, tá, é que eu já tô (palavrão), já, não aguento mais a cara daquele inferno daquele guri, eu peguei a toalhinha dele, cada vez que ele vinha pra cima de mim me cuspir, eu enfiava aquele pano na cara dele — diz a docente no começo do relato.
Em outro trecho, conta mais:
— Aí eu peguei e tapei ele com aquele pano, sabe, enfiava o pano assim na cara dele. Gurias, ele se jogava no chão e dizia "não me mata, profe, não me mata".
A professora Vanessa Maciel Pereira foi demitida no dia seguinte ao fato, ocorrido em 11 de agosto. A direção do colégio registrou ocorrência na polícia em 23 de agosto, depois de adotar medidas administrativas. O caso foi apurado pela Delegacia de Combate à Intolerância.
A investigada foi indiciada por "praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência", crime previsto na Lei Brasileira de Inclusão, que tem pena mínima de um a três anos de detenção e multa, podendo aumentar em um terço em casos em que a vítima estava sob os cuidados e responsabilidade do réu. Ela também foi enquadrada em lesão corporal, cuja pena varia de três meses a um ano, podendo aumentar em um terço por ser crime praticado contra menor de 14 anos.
Depois do episódio, relatos de outros funcionários da escola indicaram que a relação entre a professora e o aluno, que teve diagnóstico no Transtorno do Espectro Autista (TEA) em janeiro, não era boa. A mãe do aluno — GZH não revela o nome para preservar a identidade da criança —, uma contadora de 44 anos, disse à reportagem saber que as monitoras que atuavam com a turma eram intimidadas pela professora e não contavam à direção o que ocorria por medo de perderem o emprego.
Para a polícia, a supervisora pedagógica da escola disse que, depois da demissão de Vanessa, uma das monitoras contou que a professora "instigava o aluno a se desorganizar". A monitora disse que não falava nada por questão hierárquica e por medo de perder o emprego. Já outra professora relatou que Vanessa teria lhe confidenciado que estava ensinando um determinado aluno a se defender do colega autista.
A professora investigada prestou depoimento na segunda-feira (10). Disse que tinha vínculo com o aluno, mas que ele teria piorado ao longo do ano. Vanessa afirmou que ia trabalhar "nervosa e com medo" devido a agressões que sofria e também disse que tudo era relatado para a orientadora.
Quanto à situação no dia em que teria agredido o aluno, explicou que estava muito nervosa e que só tentou se defender. Sobre o teor do áudio, alegou que "foi modo de dizer". Negou ter colocado o pano no rosto do menino e argumentou que tudo foi dito "no calor da hora e que foi modo de se expressar". A professora negou ter tido a intenção de agredir a criança. Sobre a reação do aluno, que teria pedido "não me mata, profe", ela afirmou que, durante crises, ele dizia coisas sem sentido.
Por fim, Vanessa alegou falta de orientação por parte da escola sobre como lidar com crianças especiais. Disse que fez apenas duas formações online ao longo do ano e que as orientações da direção e da supervisão da escola eram contraditórias. A professora também negou que tenha incentivado um aluno a reagir contra o colega autista.
Para a delegada Andrea de Melo da Rocha Mattos, os delitos que embasam o indiciamento ficaram comprovados por relatos testemunhais e pelo áudio da própria professora.
— Embora possa ter havido uma espécie de negligência da escola com relação ao comportamento ou acompanhamento do aluno autista, nada justifica o fato de a professora ter tido a reação descrita por ela mesma no áudio. Ademais, segundo relatos dos funcionários da escola, um comportamento discriminatório já era observado por parte da suspeita com relação à criança. O que se sabe é que de fato o aluno tinha surtos, configurados através de um comportamento mais agressivo, os quais foram ficando mais intensificados ao longo do primeiro semestre do ano letivo. E, curiosamente, segundo diversas testemunhas, a criança teve novamente uma mudança de comportamento, positiva dessa vez, após o desligamento da professora — destacou a delegada.
"É uma coisa que a gente não pode tolerar que aconteça", diz mãe
A mãe do aluno de seis anos que teria sido agredido pela professora contou a GZH que percebia que algo ia errado com o filho na escola, mas que nunca desconfiou de atitudes da docente. A contadora de 44 anos disse que o filho tinha crises diárias e dizia ter medo. Ela pretende deixar o menino concluir o ano na escola, mas depois vai buscar outro colégio. Abaixo, trechos da entrevista:
A senhora percebia algum problema em relação à escola?
Ficamos meses com ele tendo crises quase que diariamente no colégio. E ele só dizia que tinha medo, que ficava nervoso. E eu defendia a professora. Sabe o que me dói? Que eu chamava a atenção dele, para ele respeitar a professora. E a segunda coisa foi que eu pedi para o médico aumentar a dosagem do remédio. Aquilo me doeu tanto, tanto, quando eu soube que ela estava judiando do meu filho, que ela estava errada e meu filho estava certo.
Desde a saída da professora ele está melhor?
Superbem. O mínimo que se desorganiza, já conseguem fazer o remanejo tranquilamente. Quando entra em crise, tem que fazer uma intervenção, tirar da sala, caminhar um pouco pela escola e depois voltar para sala para ele se acalmar. A professora não deixava, mandava ficar sentado ali. Imagina em crise de autismo ficar sentado. No ano passado, a professora atendia meu filho sem monitora nenhuma. Isso mostra como é possível. Agora, tinha ao menos dois adultos na sala de aula e isso acontecia. Foi um absurdo. É uma coisa que a gente não pode tolerar que aconteça.
O que fica de experiência com o episódio?
Que a gente tem que estar sempre cuidando dos nossos filhos na escola, pois não sabemos o que eles passam lá dentro. Seguir instintos, pois eu sabia que meu filho não estava bem no colégio, fiquei meses trabalhando angustiada. Uma professora que deveria ser uma pessoa preparada para atender ele, não era. Eu ainda estou me inteirando sobre o autismo, é tudo muito novo para mim. Não podemos aceitar que tratem mal ou tenham preconceito. Eu quero justiça, quero que ela pague pelo que fez com meu filho.
Contrapontos
O que disse Carlo Velho Masi, advogado da professora Vanessa Maciel Pereira:
"A defesa manifesta que, desde que tomou ciência da existência de uma investigação sobre os fatos, passou a colaborar ativamente com a delegacia responsável, fornecendo diversas provas que demonstram a inconsistência das acusações e requerendo diligências imprescindíveis à correta compreensão do ocorrido. Em mais de 20 anos de docência, Vanessa lidou com diversos alunos especiais e jamais praticou qualquer ato de discriminação, contando com o reconhecimento das escolas pelas quais passou e de muitos pais. Na realidade, não havia uma orientação clara e adequada do colégio em questão sobre como conter as crises do aluno, que frequentemente eram minimizadas pela direção para sua família. Certo é que a professora solicitou auxílio inúmeras vezes e viu-se obrigada a permanecer lidando com a situação para manter seu emprego, mesmo sem possuir uma formação específica para atendimento educacional especializado. Porém, em momento algum, a professora agrediu o aluno; apenas — e lamentavelmente — precisou defender-se sozinha, de forma proporcional e com os meios disponíveis, de mais um ataque, sem qualquer apoio de sua supervisão. O áudio encaminhado pela professora em grupo privado de colegas foi um desabafo pelo desprezo com que vinha sendo tratada há vários meses e apenas confirma que agiu em legítima defesa. Vanessa e sua Defesa técnica seguem à disposição das autoridades para esclarecer e trazer à tona a verdade, na medida que, até o momento, houve uma tentativa de tirar o foco da omissão do colégio diante dos pedidos de socorro da professora".
O que disse Cristiane Weizenmann, secretária-geral da Rede Romano:
Adotamos as medidas necessárias, encaminhamos o caso para os órgãos competentes e não vamos comentar mais detalhes por envolver a situação de um menor.