O caso boate Kiss avançou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão com sede em Washington, Estados Unidos. A entidade notificou o governo federal, em fevereiro, para questionar eventual responsabilidade pública na tragédia que matou 242 pessoas — e o Ministério das Relações Exteriores respondeu em 10 de junho.
A denúncia no âmbito internacional foi protocolada em janeiro de 2017 pelo Instituto Juntos com apoio de entidades e da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Conforme o Itamaraty, cinco anos depois, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos notificou a Missão Permanente do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) em 10 de fevereiro de 2022 para resposta sobre o caso. O governo brasileiro enviou sua resposta em 11 de junho, confirmou o Itamaraty a GZH por meio de nota. Agora, a CIDH analisará a admissibilidade do caso e emitirá uma posição, sem prazo determinado.
O Ministério das Relações Exteriores não divulgou o conteúdo da resposta à Comissão "uma vez que o Itamaraty não confere publicidade a documentos referentes a procedimentos em trâmite na CIDH cujos relatórios finais ainda não tenham sido publicados".
O Itamaraty acrescenta, em nota, que o entendimento de que o conteúdo da resposta é confidencial ocorre porque "os documentos internos da CIDH são tratados por esse órgão como sigilosos, (...), a CIDH preserva o direito das vítimas de manterem seus nomes reservados, caso esse interesse tenha sido manifestado e justificado, (...) e os relatórios de admissibilidade e de mérito são documentos confidenciais até que a CIDH os divulgue".
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão ligado à Organização dos Estados Americanos, à qual o Brasil faz parte. A Comissão não tem poder de tribunal — faz recomendações aos países membros da OEA.
Todavia, se a Comissão emitir uma recomendação ignorada pelo governo brasileiro, o caso pode ser levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos — esta, sim, um tribunal formado por juízes, localizada na Costa Rica. Em processo judicial, os juízes da Corte podem emitir sentença obrigando o Estado a algum tipo de reparação ou condenação. O Brasil é um dos países signatários que concordou em obedecer às decisões da Corte Interamericana.
A AVTSM busca que autoridades públicas também sejam responsabilizadas pelas 242 mortes na boate, por terem falhado na fiscalização, o que incluiria bombeiros, secretários, fiscais municipais e o ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer. Em nota, a Associação diz que “vítimas e familiares esperam que o processo perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos seja a forma de finalmente completar a justiça que nós e toda a sociedade brasileira espera para o massacre da boate Kiss”.
— A gente nunca parou. Infelizmente, o Ministério Público entendeu que essas pessoas não teriam cometido crime nenhum, o que entendemos de forma diferente. Recorremos à Comissão para que essas violações tenham algum reflexo. Esses inquéritos somente o Ministério Público pode desarquivar. Isso aí foi o que motivou essa petição — atesta Flávio Silva, presidente da AVTSM. — Além dos quatro réus que foram condenados, o rol de pessoas que contribuíram para que acontecesse a tragédia é muito grande. Gostaríamos que eles, no mínimo, respondessem pelos crimes cometidos.
Segundo Flávio, a AVTSM só tomou conhecimento do avanço do processo há pouco mais de uma semana, ao pedirem prioridade para o caso à CIDH. Quando conseguiram contato, foi respondido que a notificação ao Estado Brasileiro já teria saído. Só que a comissão mandou a cópia da notificação para um e-mail antigo da associação, que não existia mais.
Em 10 de dezembro de 2021, em um julgamento histórico, o mais longo ocorrido no Estado — 10 dias —, o juiz Orlando Faccini Neto, da 1ª Vara do Júri, após decisão dos jurados pela condenação dos réus por homicídio com dolo eventual, proferiu a sentença, estabelecendo as penas.
Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, sócio da Kiss, foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão em regime fechado; Mauro Hoffmann, sócio da Kiss, a 19 anos e seis meses de prisão em regime fechado; Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, a 18 anos de prisão em regime fechado; e Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda Gurizada Fandangueira, a 18 anos de prisão em regime fechado. Os réus estão presos.
Segundo Tâmara Biolo Soares, advogada da AVTSM, a condenação dos quatro réus em dezembro não anula o pedido feito à Corte Interamericana de Direitos Humanos porque, para os familiares, a Justiça foi feita com os autores privados, mas não com o Poder Público, que teria sido omisso na fiscalização da Kiss.
— Entramos com essa petição alegando violação dos direitos à vida, integralidade e à justiça pela conduta de fiscais, secretários e prefeito de Santa Maria, bombeiros estaduais e dos promotores do Ministério Público Estadual que atuaram no caso, entendendo que todos agiram no sentido de que a boate permanecesse aberta nas condições em que estava, dando causa ao incêndio e à tragédia nas proporções em que ela teve — afirma a advogada.
Tâmara acrescenta que os familiares nunca se conformaram com a não condenação de autoridades públicas na tragédia — motivo pelo qual a associação de familiares entrou com pedido, em 2017, para que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos intercedesse no caso.
— É um primeiro passo, mas importantíssimo, sem o qual nada acontece, que é a comissão notificar o Estado brasileiro dessa nossa petição e de todas as violações de direito que argumentamos. Infelizmente, é a única instância em que podemos ver a justiça se completando no caso Kiss: a devida responsabilização de todas as autoridades públicas que permitiram e agiram no sentido de que a tragédia naquelas proporções acontecesse — diz a advogada.
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, aconteceu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 e resultou na morte de 242 pessoas. O fogo começou durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira, quando o vocalista do grupo acendeu um artefato pirotécnico e as chamas atingiram a espuma do teto da casa noturna.
O ex-prefeito Cezar Schirmer disse que não tem como se manifestar agora.
— Tomei conhecimento deste assunto agora. Não sei do que se tratou na Comissão de Direitos Humanos nem a resposta do Itamaraty — justifica.