O Rio Grande do Sul lembra do dia 27 de janeiro com tristeza. Em 2013, a tragédia da Boate Kiss deixou 242 mortos, em Santa Maria. Antes disso, um outro episódio na mesma data também marcou o Estado. Em 1968, ocorreu o maior acidente ferroviário da história gaúcha.
Dois trens da Rede Ferroviária Federal S.A colidiram na Estação Fanfa, em Triunfo, na Região Carbonífera. O número de vítimas varia conforme registros da época. Reportagem de Zero Hora na época apontava ao menos 46 mortos e mais de 50 feridos.
Era um cenário diferente do atual. Triunfo era uma cidade pacata antes do polo petroquímico se instalar na região, nos anos 1980. Naquele tempo, o trem era o principal meio de transporte, já que as estradas eram precárias e poucas pessoas tinham carro. O povoado de Porto Batista, no 4º distrito do município e onde ficava a estação, não tinha luz elétrica e as informações demoravam para chegar.
Barbara Madalena Campos tinha seis anos e, naquele sábado, era uma das passageiras do trem leiteiro, chamado assim porque transportava leite e tinha dois vagões de passageiros. A menina embarcou com os pais e o irmão de dois anos em Canoas e viajava escutando seu radinho de pilha. Por volta de 17h50min, ouviu um estrondo causado pelo choque com um trem cargueiro.
— Chegou perto da estação, a gente levantou e não vi mais nada. Foi o erro de uma pessoa. Pelo que eu ouvi, ele (o maquinista do cargueiro) vinha em estado de sono e não parou onde era para parar. Os funcionários viram que ia dar a batida, tentaram salvar e colocar o nosso trem no desvio, mas não houve tempo. A máquina do cargueiro bateu no nosso trem. O mais difícil foi enfrentar aquele pós-acidente durante muitos anos — relembra Barbara, hoje com 60 anos.
O trem que transportava 689 toneladas de carga recebeu o aviso de parar 50 metros antes da estação e dar passagem à composição que vinha com os passageiros. No entanto, o maquinista Emilio Andrade da Silva não freou e atingiu o outro trem a uma velocidade de 80 km/h, segundo reportagem de Zero Hora.
Oito meses após o acidente, Emilio e outros funcionários apontados como culpados por um inquérito administrativo foram demitidos da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Ele foi indiciado por negligência e desobediência à sinalização. O maquinista contou à reportagem de Zero Hora na época que o acelerador travou e que ele não conseguiu acionar os freios a tempo.
— O estrondo foi ensurdecedor e os gritos de pavor se ouviam. Parecia que eu ia enlouquecer ao presenciar tão horrível quadro. Por favor, seu repórter, não me pergunte mais nada que não posso me lembrar do que houve depois — disse Emilio em reportagem publicada em 29 de janeiro de 1968, no caderno especial de Zero Hora com a cobertura da tragédia.
Mesmo 54 anos depois, as lembranças daquele dia ainda permanecem com os sobreviventes e testemunhas que moram na região. Em uma casa de mais de 60 anos que fica próxima ao local do acidente vive Maria Gissila Kuhn, 81 anos, a mãe da menina que ouvia o radinho no trem. A idosa de cabelos brancos ainda recorda com detalhes um dos momentos mais difíceis de sua vida: a perda do filho Antônio Valdomiro, de dois anos.
— Quando levantei para descer na estação ele estava dormindo no meu colo. Daí quando fui colocar ele de pezinho no colo deu o acidente, ele voou dos meus braços e teve morte instantânea — relembra.
Maria Gissila diz que se salvou por pouco. Ficou dentro de um buraco e quase foi atingida por uma das rodas do trem. Após perder os sentidos, ela lembra que rezava para seu anjo da guarda em meio aos gritos dos passageiros feridos:
— E o apito... Até hoje eu não suporto ouvir essas máquinas, fiquei traumatizada. Aquele apito parece que está dentro de mim.
O marido de Maria Gissila ficou bastante machucado e foi atendido em Porto Alegre. Enquanto a família buscava o corpo do irmão, Barbara ficou caminhando entre os destroços, observando o caos instaurado. Ela diz que encontrou o avô paralisado na estrada que levava à estação porque não tinha coragem de chegar ao local.
— Eu fiquei caminhando por aquilo tudo, acho que a gente vagou por um tempo — relembra.
Mesmo em choque, a solidariedade tomou conta dos moradores de Porto Batista. Inélio Tadeu Lopes da Rosa tinha 16 anos e se recorda de ter sido surpreendido com um barulho imenso perto da estação. Os pais dele eram agricultores e logo correram para auxiliar os feridos:
— Tinha que ajudar, porque não tinha quem fizesse. Todas as pessoas que podiam passavam até altas horas lá. Não tinha hospital, recursos, nunca teve. Então, a comunidade se mobilizou toda.
Hoje com 72 anos, Inélio é professor aposentado e mora no mesmo terreno, bem perto do local da tragédia. Ele comenta que os pais chegavam em casa e evitavam falar sobre o que estavam presenciando durante o auxílio na estação:
— Eram todos amigos, vizinhos, compadres. No outro dia, tinha casa com três ou quatro pessoas sendo veladas. Era muito violento para a época.
O luto e a tristeza tomaram conta da cidade. O time de futebol suspendeu as atividades e não havia mais festa na igreja. Três dias após o acidente, Barbara pediu para a avó a levar de volta à Estação Fanfa. Lá, teve uma surpresa em meio aos destroços.
— Achei o meu radinho de pilha, que ainda estava funcionando — recorda.
Ainda hoje, o rádio é o companheiro da sobrevivente. Ela mora sozinha na zona rural, a poucos quilômetros da casa da mãe e da estação. Ouvinte assídua da Rádio Gaúcha, a professora de História conta que não perde nenhum programa. Com a voz calma, vai remontando as memórias da tragédia e diz que usou sua vivência para trazer o tema para os alunos em sala de aula.
Aos poucos, a vida foi sendo retomada em Triunfo com a chegada dos novos moradores que vieram com o polo petroquímico. Como não havia outro transporte, os moradores tiveram que tomar coragem e voltar a viajar.
— Precisei usar o trem, mas viajava tremendo. Lembro que meu marido me levou para Santa Maria, mas qualquer coisinha já imaginava algo – lembra Maria Gissila.
Em dezembro de 2020, o prédio da Estação Fanfa foi atingido por um incêndio e ficou parcialmente destruído. Moradores contam que o local estava abandonado e era alvo de vandalismo. De acordo com a Secretaria de Turismo e Cultura de Triunfo, o imóvel não é tombado e pertencia à União, mas agora a concessão é da empresa Rumo Logísticas. Naquele ano, Barbara estava perto quando ouviu as sirenes dos bombeiros. A professora diz que ficou paralisada enquanto olhava o fogo consumir o prédio:
— De certa forma, parece que ali queimou uma fase da minha vida. Eu não lamento aquilo ali ter queimado. Pelo contrário, é difícil dizer isso, é um patrimônio histórico, mas ninguém mais se importava. Queimou...
Hoje, o local ainda é passagem para trens de carga. Já o transporte de passageiros não ocorre há mais de 15 anos, de acordo com a prefeitura. Após o fogo, restaram apenas parte da estrutura, com as paredes brancas marcadas por pichações, e os trilhos que foram palco de tantas lágrimas e perdas.