Diretor-jurídico da Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Paulo Carvalho, 71 anos, avalia que o júri da boate Kiss, marcado para começar em 1º de dezembro, em Porto Alegre, será capaz de trazer aos familiares dos falecidos certo "conforto e alívio" em caso de condenação.
Nesta entrevista, Carvalho, que perdeu o filho Rafael no incêndio da madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, rebate alguns argumentos de réus que buscam se apresentar como vítimas. Para Carvalho, os réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da Kiss, o produtor Luciano Bonilha Leão e o músico Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira, devem responder por crimes dolosos porque assumiram, segundo ele, o risco de matar.
Confira a entrevista:
Uma sentença condenatória trará conforto aos familiares das vítimas?
Sim, é um conforto, após tanto tempo. Está próximo de um alívio. Foram quase nove anos. E nesses nove anos tivemos situações terríveis, decepções, e quase que esse julgamento não saiu. Quase que ninguém responderia por esse crime imenso. Agora, finalmente, a gente espera que a justiça seja feita e que a gente possa ter um pouco mais de conforto e de paz.
Ninguém queria que acontecesse, não foi premeditado, mas eles assumiram por diversas, diversas e diversas vezes o risco de matar. São tantas coisas que ocorreram naquela boate antes do incêndio. São mortes que poderiam ter sido evitadas.
PAULO CARVALHO
Diretor-jurídico da AVTSM
O que considera uma pena justa para os quatro réus?
É muito claro, está tudo documentado. Há laudos, ofícios, testemunhas, que declaram com muita precisão as ações dolosas dos proprietários (da Kiss) e dos músicos (da banda Gurizada Fandangueira). A gente espera, no mínimo, uma condenação por dolo. Ninguém queria que acontecesse, não foi premeditado, mas eles assumiram por diversas, diversas e diversas vezes o risco de matar. São tantas coisas que ocorreram naquela boate antes do incêndio. São mortes que poderiam ter sido evitadas. Não teremos nossos filhos de volta, mas que outros não passem o que passamos nesses anos todos.
O réu e produtor da banda, Luciano Bonilha Leão, que comprou e acendeu o artefato pirotécnico, disse também ser vítima e que quase morreu no dia. Ele relata ter ficado com sequelas. O senhor considera que ele seja uma vítima?
Isso é tão sórdido. É tão horroroso alguém se considerar vítima do que ele fez. É o mesmo que imaginar que alguém dirigindo um carro em alta velocidade, atropela e mata outra pessoa, mas também se fere na batida e passa a se considerar vítima. O que ele fez está muito claro. Ele comprou o artefato, sabendo que ele não poderia ser usado em ambiente fechado. Foi alertado sobre isso. Ele fez isso várias vezes. E tudo para economizar, em detrimento à vida. É a ganância. Não pensou que poderia causar um acidente? Ele trabalha com isso. São pessoas que vivem nessa área. Havia cortinas em volta, material inflamável. É muito difícil engolir alguém, depois de tudo o que aconteceu, se passar por vítima. Responda pelos seus atos. Tenha o mínimo de decência. Não estou dizendo que não deva se defender. Que se defenda, mas falar que é vítima? Não tenho mais palavras para pessoas que agem desse jeito.
O réu e vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, na mesma linha de Bonilha, diz ter desmaiado pela inalação da fumaça tóxica. Ele, que recebeu o artefato aceso e o ergueu, disse em entrevista: "Ninguém saiu de casa naquela noite para morrer. Mas ninguém saiu de casa para matar". Como avalia?
Ninguém saiu de casa para matar, mas mataram. Ninguém sai de casa para matar alguém, exceto em crime premeditado. O vocalista levantou para o teto (o artefato). Poderia ter levantado para o lado. Aí pegaria na cortina. O crime não é esse. Foi ele quem viu o fogo e que tentou rapidamente, com uma garrafinha de água, apagar. Vendo que o fogo estava se alastrando, ele tinha o microfone na mão. Ele poderia ter avisado. Deveria ter avisado a segurança, os frequentadores. Deveria ter alertado sobre o que ele provocou, não importa se involuntariamente. E o que ele fez? Quando viu que estava se alastrando, fugiu pela passagem lateral que conduz do palco à porta de saída. Dizer que desmaiou é querer se colocar como vítima. O som estava ligado e ele poderia ter feito algo. Ele tem de ter o mínimo de vergonha e de consciência de não se colocar como vítima. Isso é imperdoável.
Ninguém saiu de casa para matar, mas mataram. Ninguém sai de casa para matar alguém, exceto em crime premeditado.
PAULO CARVALHO
Diretor-jurídico da AVTSM
O réu Mauro Londero Hoffmann está publicamente em silêncio até o momento, mas sua defesa salienta que ele era apenas investidor, sequer frequentava a Kiss.
Ele é desmentido pelas testemunhas. Quando diz que era um sócio investidor, as testemunhas falam que ele estava sempre presente e determinava as ações que deveriam ser feitas ali. Aquelas barras (metálicas, de contenção), ele estava determinando como fazer. A espuma. Ele tinha participação ativa nas decisões, junto dos outros sócios. Ele fez ações tão dolosas quanto os outros. Ele poderia não estar o tempo todo, mas na questão do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta assinado com o Ministério Público) e situações que deixaram a Kiss aberta mesmo em reforma, é muito claro que ele participou para que a boate não fosse fechada. Ele causou riscos aos frequentadores. O que ele está dizendo é uma tentativa de se furtar das suas responsabilidades.
O réu Elissandro Callegaro Spohr foi bastante incisivo, em entrevista, ao dizer que a culpa pelo incêndio é do Ministério Público, por causa do TAC que levou à realização de obras na Kiss que tentassem conter o barulho que incomodava a vizinhança. Ele afirma que somente por conta da atuação do MP a espuma foi instalada (essa tese é rebatida pelo MP e por pelo menos um engenheiro). Diz que o promotor Ricardo Lozza, que promoveu a assinatura do TAC, deveria estar respondendo entre os réus. Como avalia?
Nós entramos com vários pedidos para que ele (promotor) respondesse pelos atos. A situação do Ministério Público, dando condições para que ele (promotor) não estivesse entre os denunciados, é algo que, para nós, o Estado brasileiro ainda vai responder pelas omissões do poder público. Mas o fato de o Spohr querer se eximir, querendo colocar a culpa somente no Ministério Público, isso não é verdade. Ele tem de assumir a culpa dele. Os atos e ações dele. Quanto ao TAC, de um lado o poder público foi omisso, não fez o seu dever, deixou a boate aberta. Mas isso não impediu os proprietários de retirar os extintores de incêndio porque eles "enfeiavam" o ambiente. E mandaram colocar numa sala à parte. Não foi o Ministério Público que fez isso. Foram eles. O fato de não ter extintor foi mais uma situação que poderia ter salvado vidas, ter diminuído ou evitado o incêndio, se tivesse um segurança habilmente treinado. Isso é ação dele (Spohr). Ele deve responder porque transformou a boate em uma ratoeira. Os exaustores, está escrito nos depoimentos, eles fecharam para ter maior consumo de bebida devido ao calor.
O senhor afirma que não havia extintores. O Spohr diz que havia. Uma imagem do dia mostra uma pessoa que tenta acionar um equipamento, mas ele não dispara na hora. O senhor tem a convicção de que não havia extintores na área de público da boate?
Sim. Isso está muito claro. Os demais extintores, está lá verificado, estavam num outro local fechado, sem acesso. Tentar mentir reiteradas vezes não vai transformar isso numa verdade.
Voltando ao MP, por que o senhor acha que o promotor deveria estar respondendo junto aos quatro réus?
São culpas concorrentes, cada um tem a sua. Não tenho receio de falar sobre esse assunto. O Ministério Público deveria ter deixado que todos os envolvidos fossem julgados. Que fossem ouvidos e tivessem a chance até de se defender. Como eles (MP) arquivaram os processos (contra parte dos indiciados pela Polícia Civil), eles não tiveram condições de transformar o caso no que seria um amplo sentido de busca da justiça, mesmo cortando na própria carne. Esse seria o objetivo, mas eles não deixaram que o promotor fosse julgado. O Ministério Público se sentiu fragilizado para colocar outras pessoas (entre os denunciados à Justiça) porque ele mesmo não permitiu que um promotor fosse julgado. Isso é um assunto que temos desde o início. Que as defesas (dos réus) não se aproveitem disso. Tenham o mínimo de compostura e decência. O Ministério Público tem a sua culpa (tanto a instituição quanto o promotor que atuou no TAC da Kiss, que visava conter o barulho da boate, não foram denunciados pelo MP e não respondem como réus), o prefeito (à época era Cezar Schirmer, que não é réu nem foi denunciado pelo MP) tem a sua culpa pela omissão e pelo descaso, pela improbidade administrativa. São vários crimes, culposos ou dolosos (veja contrapontos de Schirmer e do MP ao final). É o exemplo de uma justiça plena que a gente quer.
E o que pretendem fazer a respeito?
Vamos seguir, após o julgamento, com a nossa petição à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ingressamos em fevereiro de 2017. Já tivemos diversas audiências. Pedimos que o Estado responda pelo o que aconteceu. E que haja um julgamento internacional. E aí os condenados não são promotores ou o prefeito, mas o Estado brasileiro. Por outro lado, acho que essas pessoas (do poder público) estão moralmente presas pelas suas consciências.
Como avalia a decisão da defesa de Spohr de indicar o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer como testemunha?
É tentativa de desviar o foco dos réus para o prefeito, que deveria estar respondendo também. O prefeito deveria responder pela sua omissão. Ele não tem nada a ver com os dolos e os crimes dos réus. Mas eu também acho interessante o Schirmer ir lá. Acho muito bom. Ele nunca admitiu, nunca pediu desculpas, sempre se escondeu. Como prefeito, ele poderia ter atuado.
O Spohr disse que um engenheiro indicou para ele a instalação da espuma acústica. O engenheiro citado nega e destaca que o Spohr teria supostamente instalado uma espuma inadequada, comprada de uma empresa de colchão, por conta própria, já depois da inspeção da obra que liberou a casa de festas. Como avalia essa possível conduta em relação à espuma, que propagou chama e produziu toxina?
É a mesma tentativa reiterada de mentir, mentir e mentir para transformar isso em uma verdade. O engenheiro desmente isso categoricamente. Ele (Spohr) fez por conta própria. Das 242 pessoas, sabe quantos morreram por causa do fogo? A superlotação, a exaustão do ar que não deixou a fumaça subir, as janelas estavam tapadas, para tentar conter o ruído. Ele fez isso por conta própria. Não deu chance de a fumaça sair. E 95% das mortes foram por asfixia e envenenamento. Essa foi a grande causa do número de mortes (Paulo interrompe e chora). Quem viu as fotos de jovens naquelas grades, no chão, corpos por cima de corpos, asfixia mecânica. É muito duro. Outros pais precisam saber desse massacre. Só 5% tiveram morte por causa do fogo. A grande maioria foi em decorrência dessa maldade, desse dolo, por causa da ganância e da omissão. As pessoas deveriam saber que pais adoeceram e morreram por frustração, suicídios involuntários por terem perdido o sentido na vida. Por isso pedimos que respeitem, que não usem esses artifícios de se colocarem como vítimas e de culparem os outros, escondendo os seus crimes. Isso é vergonhoso demais.
A casa estaria com público acima da capacidade no dia. Spohr nega que isso tenha acontecido. Qual a avaliação da AVTSM?
Aconteceu a superlotação. As emissões de convites eram acima do previsto na documentação para a dimensão da boate. Isso já foi analisado de forma precisa. A boate foi multada várias vezes por superlotação. E tem até declarações de funcionários que falam claramente que nunca tinham visto a boate tão lotada. Isso em nome do lucro exacerbado, a qualquer preço. A evacuação teria sido melhor se tivesse o número de pessoas de acordo com as dimensões da boate.
Há uma discussão entre acusação e defesa sobre seguranças da Kiss terem ou não impedido, inicialmente, a evacuação de pessoas por conta do pagamento da comanda, somado à possível dificuldade de fluxo devido a barreiras metálicas no interior da boate. O que pensa sobre o aspecto?
Dentre todas as condições que levaram à grande quantidade de mortes, essa é uma delas. O vocalista não avisou, os seguranças não sabiam o que estava ocorrendo, porque estavam (do lado de) fora, as barras metálicas foram determinantes para a pressão dos corpos. Mais a saída tortuosa, a falta de sinalização. Todas essas condições levaram à grande quantidade (de vítimas). O que eles (réus) tentam mostrar é que houve uma situação culposa, que eles não tinham conhecimento, não sabiam e que a culpa é de outros, que o Ministério Público não verificou. Não é isso.
A AVTSM tomou conhecimento de que o réu Spohr lançou, às vésperas do júri, um documentário chamado “Kiko da Boate Kiss”, em que ele tem um diálogo longo com o seu advogado, falando da vida, da música e da tragédia? Qual a avaliação?
Os familiares estavam falando sobre isso, revoltados, e eu acabei assistindo. Alguém dizer "Essa não é a Kiss que eu conheci" (referindo-se a declarações do documentário. No vídeo, Spohr afirma: "Não é essa a boate que eu tinha")... Essa sua Kiss é a que matou 242 e feriu 636. Mostra o quanto ele está longe de ter consciência do que aconteceu. Os familiares, ouvindo isso, é o mais ultrajante que um ser humano pode chegar. Não ter o mínimo de compaixão. E não tem mesmo. O mínimo de humanidade. É mais uma prova da frieza e do caráter. Não tenho mais palavras para falar sobre essas tentativas de humanizar o criminoso. E, para isso, usam a dor dos pais das vítimas. É para tentar que os pais respondam, que fiquem com raiva, e ele (defesa de Spohr) use isso para dizer que os pais buscam vingança. É uma provocação.
O senhor usou a palavra "provocação". Avalia que a defesa do Spohr faz provocações intencionais com possível objetivo de tumultuar e buscar eventual interrupção do júri?
Esse documentário, as afirmações, têm claros objetivos de deixar os pais em condição de fragilidade. O resultado disso é que os pais podem ficar muito mais revoltados e fazer declarações de que são "assassinos" e não sei mais o quê. Não foi premeditado, não acho que (os réus) são assassinos, mas assumiram o risco. Essas declarações e o documentário podem ter esse resultado. Eu peço aos pais que não entrem nesse jogo. É degradante demais alguém usar isso para benefício próprio.
Acho que vai trazer paz, um certo alívio. Conhecemos pais cujos filhos entraram para salvar amigos várias vezes e, na última, não retornaram. Deram a vida. A gente precisa ter essa consciência de que eles serão justiçados.
PAULO CARVALHO
Diretor-jurídico da AVTSM
E depois do júri da Kiss, como seguir a vida?
Acho que vai trazer paz, um certo alívio. Conhecemos pais cujos filhos entraram para salvar amigos várias vezes e, na última, não retornaram. Deram a vida. A gente precisa ter essa consciência de que eles serão justiçados. Os caminhos que vamos tomar não param no julgamento. Temos a Corte Interamericana e um trabalho muito forte de prevenção (de incêndio), participando de seminários. Temos a busca por medicamentos para os jovens sobreviventes. Uma parcela tem situação de gravidade maior. Queremos continuar nesse trabalho para que nós possamos dar uma contribuição a outros pais. Que outros pais, outras famílias, não passem por isso. Vamos continuar nesse caminho. Tenho a minha vida dedicada a isso.
Contrapontos
O que diz o ex-prefeito Cezar Schirmer
Manifestou-se a partir de nota enviada pela assessoria: "Depois de analisar profundamente as provas, os depoimentos e a legislação, o Ministério Público decidiu por não indiciar os integrantes da prefeitura de Santa Maria, seja por ação ou por omissão. Mesmo em recurso, essa apreciação foi confirmada por diversos promotores e procuradores, em várias instâncias, bem como pelo próprio Poder Judiciário. Trazer recortes de fatos já analisados profundamente no processo não contribui para apurar o caso. Agora, na véspera do julgamento, alguns setores voltam a usar uma narrativa que, na verdade, tem fundo político ou funciona como estratégia de defesa. Assim como todos, também quero justiça. Estarei à disposição do Poder Judiciário como sempre estive ao longo de minha vida."
O que diz o Ministério Público
Manifestou-se em nota oficial: "O Ministério Público seguiu à risca a legislação que rege o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), não tendo como ser responsabilizado por algo que não apareceu na sua investigação, que é o risco à segurança das pessoas. A questão dos alvarás não diz respeito à atuação do MP e não autoriza o fechamento da boate. Por isso, a responsabilidade criminal pelas mortes está sendo atribuída a quem efetivamente foi responsável pelas mortes, que são os quatro réus. Inclusive, a tese dos homicídios dolosos atribuídos aos réus já foi validada pelo Superior Tribunal de Justiça. De resto, todas as ações do MP foram submetidas e validadas pelos órgãos do próprio Ministério Público e do Poder Judiciário."