Ao longo dos últimos dias, GZH fez entrevistas com três dos quatro acusados pelas 242 mortes na boate Kiss, que incendiou em 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria. Eles serão julgados a partir de 1º de dezembro e, na conversa com os repórteres, apresentaram sua defesa. Relataram como foram os últimos quase nove anos, afirmaram que são tão vítimas quanto as famílias, que há outros culpados que não estão no banco dos réus e que tornaram-se um tipo de alvos inocentes da tragédia.
A reportagem ouviu também uma familiar de vítima. Carina Adriane Corrêa, 43 anos, diz que sempre teve boa disposição, mas que a saúde a abandonou no dia em que a sua primogênita, Thanise, morreu aos 18 anos. A garota, estudante de Filosofia, foi uma das 20 primeiras pessoas a ser retirada, já sem vida, da boate Kiss.
Carina padece de dores constantes, por fibromialgia, que a forçaram a uma parada mais que precoce. Trabalhava no setor de nutrição de um hospital, mas hoje fica em casa, com auxílio-doença do INSS. A mãe dela desenvolveu um câncer após a morte da neta e o pai dela morreu de infarto, menos de um ano após o incêndio da boate. Falava todos os dias nos jovens mortos na tragédia, inconformado, descreve Carina. Camilly, 21 anos, irmã de Thanise, também teve câncer.
— A família inteira adoeceu. Não existe um dia que não seja doído. Durmo à base de remédios, tomo todo tipo de medicamento, mas a dor não passa. Levantar e saber que a Thanise não está é horrível — descreve a mãe.
Carina hoje cuida do filho caçula, Theo, três anos, e ajuda Camilly e sua filha, a neta Isabelly.
Ela diz ter pesadelos noite sim, noite não. Acorda assustada com o som das sirenes de ambulância, pois mora perto do hospital onde trabalhava. Lembra do instante em que saltou da cama sobressaltada, mais de oito anos atrás, para ligar para Thanise. Seria a última vez. Era 1h30min e a filha disse que estava na Kiss. Cansada, pretendia voltar logo para casa. Não retornou.
— Mãe, te amo, fica tranquila — foram as derradeiras frases ouvidas pelo celular.
No meio da madrugada de 27 de janeiro de 2013, Carina estava de plantão no hospital. Estranhou o alarido cada vez maior das ambulâncias. Reparou que a filha ainda não tinha retornado. Ligou e ela não atendeu. Decidiu falar com colegas, mergulhados no caos do socorro aos feridos que chegavam aos borbotões da Kiss.
— Me deu um desespero. Vi aquelas crianças todas chegando, em roupas de festa, cobertas de fuligem no rosto. Olhei leito por leito nas enfermarias. E nada da Thanise. Os colegas prometiam que iriam encontrar minha filha, mas reparei o olhar deles e comecei a suspeitar do pior — recorda, emocionada.
Carina voltou para casa e encontrou amigos da filha, chorando. Tinham visto um vídeo no YouTube com corpos de jovens sendo retirados e um deles parecia com o de Thanise.
— Não é, é — começou a gritar a mãe, desesperada.
A certeza veio de manhã, quando um irmão de Carina apareceu, chorando. Falou que estava confirmada a notícia que ninguém queria. O corpo de Thanise estava no ginásio Farrezão, à espera de reconhecimento. Foi um dos 20 primeiros a ser retirado da danceteria que virou túmulo em chamas.
— Thanise não tinha um ferimento, parecia estar dormindo. Maquiagem intacta, unhas pintadas, como na hora em que saiu de casa. Linda. Para sepultar ela, vesti com uma camiseta dos Beatles que tinha comprado naquela semana e uma calça de cetim preto que ela adorava — comenta Carina, em lágrimas.
O saguão da casa onde Carina mora, em Santa Maria, é emoldurado com retratos gigantes de Thanise e um mural com fotos dela e dos amigos. Numa delas, quatro jovens estão abraçados — todos morreram na Kiss.
Carina não sabe se terá forças para assistir ao júri dos acusados pelo incêndio da boate. Ela diz que não quer vingança, apenas que a lei seja cumprida. E tem um recado aos réus.
— Quero que entendam a irresponsabilidade que cometeram. O despreparo daquele lugar. O tamanho da dor que causaram a mais de 200 famílias. Aqueles jovens não voltarão. Minha filha morreu inocentemente — conclui, com olhos marejados e cabeça baixa.