Integrante de uma organização centenária e reconhecida mundialmente por serviços de ajuda humanitária, o escritório da Cruz Vermelha no Rio Grande do Sul (CVBRS) é alvo de investigação do Ministério Público gaúcho por suspeita de desvio de recursos destinados à gestão de hospitais no Rio de Janeiro.
A apuração começou a partir de denúncia feita pelo ex-presidente da unidade gaúcha Milton Fernando Pithan, cujos dados reunidos em auditoria apontam para possível desvio ou mau uso de cerca de R$ 225,5 milhões entre 2019 e 2020. GZH teve acesso ao documento.
A entidade no Rio Grande do Sul também entrou recentemente na mira da CPI da Covid, no Senado. Os senadores aprovaram requerimento de solicitação ao Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf) de relatório de inteligência financeira da Cruz Vermelha do RS.
Conforme a assessoria do senador Humberto Costa (PT), autor do pedido, a "medida insere-se no contexto do trabalho do subgrupo da CPI que investiga denúncias de corrupção na rede de hospitais federais do Rio". A CVBRS recebeu, segundo a assessoria do petista, R$ 15,9 milhões da Fundação Estadual de Saúde do Rio, dinheiro oriundo da União. O objetivo da solicitação é investigar a regularidade da aplicação desses recursos.
Já Pithan usou o material da auditoria para pedir investigação à Polícia Civil e ao Ministério Público (MP) Estadual. Em quase 200 páginas, esmiuçou suspeitas que envolveriam dirigentes nacionais da Cruz Vermelha Brasileira e integrantes da unidade gaúcha que atuavam no escritório da organização no Rio de Janeiro.
Apurações sigilosas
O MP do Estado confirma que uma investigação foi aberta, mas não dá detalhes da apuração, que é sigilosa. Na Polícia Civil, há inquérito aberto para analisar o material. Irregularidades envolvendo a CVBRS vieram à tona em 2018, na Operação Calvário, deflagrada pelo Ministério Público Estadual do Rio e da Paraíba. A CVBRS teve seu nome e CNPJ usados para sustentar negócio de superfaturamento de contratos na área da saúde e distribuição de benefícios financeiros para políticos, agentes públicos e empresários desses dois Estados.
Desde então, a unidade enfrenta apurações em torno da gestão no escritório do RS que funciona no Rio. Naquele Estado, inclusive, a CVBRS foi declarada inidônea pelo Tribunal de Contas.
No período em que teriam ocorrido os desvios listados por Pithan, a CVBRS recebia em torno de R$ 23 milhões mensais de contratos com a prefeitura e o governo do Rio de Janeiro. O dinheiro público, decorrente de contratos de gestão de hospitais, era administrado por um escritório da unidade gaúcha instalado no Rio.
Expulsão de presidente
Três por cento do total deveria ser repassado para bancar as despesas e atividades da sede da CVBRS na Capital, na Avenida Independência, bairro Rio Branco. O restante deveria girar para administrar as casas de saúde no Rio.
O relatório da auditoria explica supostos descontroles. Destaca que notas fiscais eram pagas sem qualquer conferência da prestação do serviço ou mesmo se quem estava cobrando tinha contrato formalizado com a CVBRS.
Outra situação foi o encontro, no escritório do Rio, de 153 selos oficiais de tabelionato, destinados à autenticação de documentos e também a reconhecimento de firma. O material, que serve para dar caráter oficial a documentos e transações, foi entregue ao MP do Rio para apuração.
Pithan foi eleito presidente em outubro de 2020, afastado em fevereiro e expulso em abril. Ele alega ter sido banido depois de mostrar o resultado preliminar da auditoria para o comando nacional da Cruz Vermelha.
Já o órgão central da entidade justifica a punição com o argumento de que a contratação da auditoria que apurou supostos desvios teria sido feita de forma irregular. E que a expulsão teria sido consequência de outra contratação considerada fora das regras da organização: a de seguranças pessoais para acompanhar Pithan em viagens ao Rio.
Pithan ingressou na Justiça para tentar retornar à presidência da unidade gaúcha.
Contrapontos
O que diz a Cruz vermelha do RS
A entidade nega irregularidades e diz não ter apurado as denúncias levantadas pela auditoria.
O que diz a Cruz Vermelha Brasileira (CVB)
O presidente nacional da CVB, Júlio Cals de Alencar, diz que em relação aos supostos problemas apontados na auditoria, eles são infundados – mesmo sem ter feito uma apuração.
Além disso, Alencar emitiu nota oficial: "Resta ser esclarecido que ainda não fora realizada nenhuma auditoria privada na Filial CVBRS, haja vista que os encerramentos dos contratos estão ocorrendo agora em 2021, e como tal, naturalmente passarão por rigorosas comissões de auditoria dos próprios órgãos públicos contratantes. Além do mais, a auditoria mencionada pelo Sr. Milton Fernando Pithan carece de credibilidade, uma vez que o escritório contratado para a prestação dos serviços não possui as credenciais ou a expertise necessária para exercer tal atuação, além de ter sido contratado sob circunstâncias eivadas de totais obscuridades e arbitrariedades, o que inclusive ensejou no afastamento pela Comissão Nacional de Ética da CVB", diz trecho do texto.
Objetivo é resgatar princípios
Por trás do gerenciamento de contratos que envolvem milhões de reais, a Cruz Vermelha Brasileira do Rio Grande do Sul (CVBRS) enfrenta dificuldades financeiras. Até outubro, a unidade ainda tem contrato com o Estado do Rio de Janeiro para gestão de dois hospitais do Complexo Estadual de Saúde da Região dos Lagos, no valor de R$ 24,4 milhões por três meses de aditivo contratual.
O valor é usado para custeio dos hospitais e pagamento de salários de funcionários da CVBRS no Rio e em Porto Alegre. Além disso, a entidade conta com doações e com o ganho de cerca de R$ 6 mil mensais oriundos de vendas de brechó.
Para manter as atividades, a atual gestão mira em resgatar os princípios educacionais da organização. Para isso, a ideia é ofertar cursos e palestras para empresas, comunidades e instituições sociais. Parcerias com o poder público também serão buscadas. Sete cursos e temas para 50 palestras já estão prontos.
— O fim da Cruz Vermelha não é a gestão em saúde pública. Queremos resgatar princípios — diz o presidente Ismael Pereira.
No horizonte, a CVBRS tem como desafio manter sua sede, o prédio em que a organização começou a funcionar em 1940. O imóvel foi leiloado por R$ 1,7 milhão no ano passado por causa de dívidas em Santa Catarina. A entidade está recorrendo para não ser despejada. Outro desafio é quitar dívidas trabalhistas e com fornecedores, num total de R$ 90 milhões.
É no prédio leiloado (Avenida Independência, 993) que são guardadas doações destinadas a comunidades carentes e onde são realizadas atividades do ambulatório de Saúde Mental (para adultos, crianças e adolescentes) e dos departamentos de Migrantes, de Infância e Adolescência, de Meio Ambiente e de Idosos. Os trabalhos contam com cerca de 50 voluntários, segundo Ismael.
Crítica às acusações
Quanto às denúncias feitas pelo ex-presidente Milton Pithan, Ismael, que era o vice dele, afirma que as acusações são "vazias e causam desconforto por não terem provas". Questionado se os assuntos levantados na auditoria foram apurados pela CVBRS, Ismael afirmou durante visita da reportagem à sede que desconhecia o teor das suspeitas. Um dia depois, a entidade emitiu nota explicando a exclusão de Pithan da CVBRS e questionando algumas das supostas irregularidades apontadas na auditoria. Em relação a Operação Calvário, Ismael diz que a CVBRS é assistente de acusação do Ministério Público no processo:
— Pretendemos responsabilizar antigos gestores e pessoas envolvidas nas irregularidades que vierem a ser comprovadas.