Uma ideia nascida na iniciativa privada, abraçada no meio acadêmico e convertida em política pública municipal faz de Vera Cruz, no Vale do Rio Pardo, um exemplo em preservação de mananciais, com resultados práticos para a população. Ao longo de uma década, o Programa Protetor das Águas — que remunera pequenos proprietários de terras para que cuidem do meio ambiente — protegeu o município de estiagens e proporcionou um salto na qualidade da água consumida na cidade.
A origem dessa história, inspirada no modelo bem-sucedido de Nova York (leia mais abaixo), uma das pioneiras em pagamento por serviços ambientais (PSA), remonta a 2010. Na época, a Universal Leaf Tabacos, multinacional que atua na região, procurou a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) para uma parceria.
— A empresa tinha recursos para investir em preservação e nos pediu para criar uma iniciativa com base no PSA. Foi um desafio, porque tivemos de aprender na prática — recorda o engenheiro agrônomo Dionei Delevatti, idealizador da proposta, que hoje vive em Santa Catarina.
O projeto começou em 2011, com foco no arroio Andréas, responsável por fornecer 70% da água destinada à área urbana de Vera Cruz. Primeiro, os técnicos mapearam a bacia hidrográfica e identificaram 103 nascentes. O passo seguinte foi convencer os donos dos terrenos a se engajarem na causa, ajudando a cuidar das fontes. Como incentivo, cada um receberia R$ 200 pela adesão e R$ 325 por hectare a ser protegido, todos os anos.
— No início, muitos agricultores ficaram desconfiados. Não acreditavam que seriam pagos e achavam que teriam as terras tomadas. Gradativamente, com diálogo, o processo foi evoluindo — conta o engenheiro ambiental e coordenador do programa na Unisc, Marcelo Luis Kronbauer.
Aos poucos, os técnicos fizeram o diagnóstico de cada local. Depois, com recursos do projeto, as nascentes foram cercadas para impedir a ação do gado, permitir a regeneração das matas ciliares e conter o avanço das lavouras. Foram inscritas 68 propriedades, e o arroio passou a ser monitorado de perto.
Em 2011, antes das mudanças, 48% das amostras coletadas no córrego tinham classificação ruim ou regular. Em cinco anos, esse percentual caiu para 10%, índice que se mantém até hoje. Ao mesmo tempo, a captação de água passou de 3 milhões de litros por dia para 5,4 milhões.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
— Na seca de 2020, os municípios vizinhos tiveram de fazer racionamento. Em Vera Cruz, não foi necessário. Passamos pela estiagem sem problemas — destaca a bióloga Tanise Etges, que coordena a iniciativa na prefeitura.
Nesses 10 anos, o projeto se tornou alvo de legislação municipal específica e ganhou novo status. A prefeitura isentou os participantes da cobrança de tarifa d’água e criou um fundo para reforçar as ações, reconhecendo a importância do trabalho.
— A questão hídrica é fundamental. A cidade vem crescendo muito e temos de garantir estrutura de captação e água de qualidade — resume o prefeito de Vera Cruz, Gilson Becker.
Em 2021, a intenção é expandir horizontes. Desde 2017, a Phillip Morris Brasil assumiu o financiamento da iniciativa e, agora, segundo a gerente de Sustentabilidade Ambiental da companhia, Ana Laura Assumpção Vieira, a empresa planeja ampliar recursos para incluir mais 40 produtores no projeto, que já tem lista de espera. A perspectiva anima quem acompanha as transformações desde o início.
— Quando você sonha com um projeto de sucesso, tudo o que quer é que ele se torne uma política pública e que tenha vida longa. O Protetor das Águas nasceu na iniciativa privada, está fazendo 10 anos, tem lei municipal e apoio da Agência Nacional de Águas. Podemos dizer que deu certo. Se alguém quiser repetir essa experiência em outro local, já tem um ponto de partida — celebra Delevatti.
Exemplos de engajamento
Quem visita a propriedade da família Finkler, em Linha Alto Dona Josefa, interior de Vera Cruz, se encanta com o que vê: o curso do arroio Andréas corre caudaloso e límpido próximo à casa, rodeado de palmeiras, taiobas, árvores de diferentes portes, flores e folhagens. No fundo do córrego, é possível visualizar as pedras onde vivem cascudos e serpenteiam lambaris. De uma fonte, jorra água pura e fresca. Ao lado, uma cerca de arame impõe limites ao gado e mantém o ambiente intocado — um recanto natural que só existe graças ao Programa Protetor das Águas e que hoje é motivo de orgulho.
— Antes, não tinha nenhuma árvore aqui. Não tinha nada. A gente aceitou participar do projeto, porque entendia a importância. Não gastamos um real e ainda ganhamos um incentivo financeiro, mas não é pelo dinheiro. Ficamos felizes com o resultado. É só olhar: a nascente está preservada, o arroio ficou mais limpo, tem mais água, está tudo mais bonito — diz o agricultor André Finkler, 41 anos.
Os pais dele, Geraldo e Gladis, também não se cansam de admirar o local, que recebeu um pontilhão e um quiosque com vista para o manancial. No início, quando aderiu ao projeto, o patriarca chegou a ser alvo de falatório na localidade. Hoje, dá risada.
— Primeiro, diziam: olha lá, o Geraldo vendeu a terra dele por R$ 200 (em referência ao valor pago pela adesão ao programa). Agora estão correndo atrás, querendo participar — brinca o proprietário.
Perto dali, em Linha Ponte Andréas, o casal Rui Jost, 49 anos, e Vivian Ester Albrecht Jost, 45, compartilha do mesmo sentimento. Eles já preservavam a mata ciliar antes de aderir ao projeto, mas sabiam que, sozinhos, não conseguiriam ir além. Nas terras deles, próximas à estrutura de captação, o leito ganha corpo e é ladeado por mata nativa.
— Sempre tivemos o costume de cuidar do arroio, mas somos parte de um todo. Com o programa, os resultados se multiplicaram. É notória a melhoria da qualidade da água — ressalta Jost.
O programa
- Batizado de Protetor das Águas, foi criado em 2011 e segue em andamento, com a participação de 63 proprietários de 68 áreas rurais de Vera Cruz, no Vale do Rio Pardo
- As propriedades contemplam 103 nascentes do Arroio Andréas, responsável por 70% da água consumida na zona urbana do município
- Como incentivo para aderir à iniciativa, os proprietários recebem, anualmente, pagamento por serviços ambientais (PSA) no valor de R$ 200, mais R$ 325 por hectare preservado
- Desde 2015, o programa está previsto em legislação municipal específica e é considerado uma política pública
Como funciona
- O proprietário que adere se compromete a preservar a área do arroio definida em conjunto com os técnicos do projeto
- Na maior parte dos casos, isso inclui o cercamento de nascentes e zonas ribeirinhas, que é pago pelo programa
- Com o cercamento, impede-se o acesso do gado e o avanço da agricultura e preserva-se o leito, com a reabilitação da vegetação
- Os técnicos monitoram a qualidade e o volume de captação da água
- A adesão é renovada a cada ano, após avaliação dos locais
Quem financia
- De 2011 a 2016, a patrocinadora foi a Universal Leaf Tabacos, com fábrica em Santa Cruz do Sul, município vizinho a Vera Cruz
- Desde 2017, o patrocínio foi assumido pela Philip Morris Brasil, que também tem filial na região
- Desde 2015, a prefeitura oferece isenção da tarifa de água de até 15 metros cúbicos mensais aos participantes do projeto, o que equivale a cerca de R$ 500 por ano
- Desde 2021, 1% da arrecadação do município com a tarifa de água é destinado ao Fundo Municipal de Pagamento por Serviços Ambientais
- O fundo foi criado para reforçar o programa. Como a empresa patrocinadora faz os pagamentos aos proprietários, o dinheiro é usado para ações secundárias, como reforma de cercas
Quem coordena
O programa é liderado por um grupo gestor, coordenado pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e pela prefeitura de Vera Cruz, com apoio da Agência Nacional de Águas (ANA), do Comitê Pardo, da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) e da Emater/RS-Ascar.
Apoio da ANA
A Agência Nacional de Águas (ANA) credenciou o projeto ao Programa Produtor de Águas e investiu R$ 654 mil na iniciativa, com contrapartida de 2% do município, totalizando R$ 667 mil reais. O recurso foi usado em ações como plantio direto nas lavouras (o que evita a erosão do solo), palestras sobre educação ambiental, melhorias nas estradas rurais e adequação de taludes no arroio Andréas.
Inspiração em Nova York
A ideia de usar o pagamento por serviços ambientais (PSA) para preservar o arroio Andreas e melhorar as características da água em Vera Cruz teve como inspiração o caso de Nova York. No fim da década de 1980, a metrópole norte-americana tinha população crescente e se via às voltas com um sério problema: a péssima qualidade do líquido que saía das torneiras.
A solução encontrada foi pagar agricultores que viviam nas montanhas de Catskill, fora do centro urbano, para que atuassem na preservação de mananciais em um amplo programa ambiental que até hoje é considerado modelo.
— A experiência de Nova York foi uma das primeiras na área de PSA. Eles decidiram ir até as montanhas buscar água e trabalhar com os agricultores na preservação já na origem. O investimento foi quase sete vezes menor do que se tivessem tratado água poluída ou optado por um tipo distinto de captação. Você investe na preservação, que parece inicialmente um gasto alto, mas, ao final, isso irá reduzir outros custos — explica o engenheiro agrônomo Dionei Delevatti.
Mais do que um projeto bem feito, avalia o engenheiro ambiental Marcelo Luis Kronbauer, o exemplo de Nova York denota a importância de gestores conscientes e de dialogar com aqueles que, em outros momentos, poderiam ser vistos como entraves.
— Houve um discernimento dos tomadores de decisão ao olhar para os mananciais com mais atenção. Ao investir na recuperação dessas áreas, eles mudaram o conceito do agricultor, que deixou de ser um vilão, alguém que estava lá desmatando e poluindo, e virou um aliado no processo. Em Vera Cruz, acreditamos muito nisso — reforça Kronbauer.