O ataque ao sistema de informática da justiça estadual gaúcha completa 17 dias nesta sexta-feira (14). Foi a maior invasão hacker da história do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Inicialmente, como não se sabia a dimensão, todos os sistemas que funcionam no escopo do Judiciário foram desconectados. Aos poucos, alguns voltaram a funcionar. Mas de lá para cá, ainda não se sabe exatamente o prejuízo que esse ataque causou a processos, documentos e até mesmo a informações sigilosas de servidores, juízes e desembargadores da corte e de investigações criminais, por exemplo.
Ainda não se tem certeza nem se processos inteiros ou se parte deles foram perdidos. O que se sabe é que documentos salvos em HDs de computadores se perderam. Arquivos de processos eletrônicos estão corrompidos e não se sabe se poderão ser recuperados. Também não se sabe se documentos salvos em pastas na rede do TJ -RS poderão ser recuperados, já que muitos seguem inacessíveis. Os processos físicos que já estavam com tramitação apenas interna em razão da pandemia, estão com muitas das movimentações impossibilitadas.
GZH conversou com servidores do Judiciário, policiais, promotores e procuradores de justiça, juízes, desembargadores, defensores públicos e advogados, sobre qual o impacto na prática desse ataque cibernético,
Além da preocupação com o atraso ainda maior no andamento de processos, o que já existia em razão da pandemia e do fechamento dos foros e do TJRS, o temor também está na perda em definitivo desses.
Douglas Régis de Souza é escrivão da 1ª Vara Criminal do Foro de Guaíba. Diz que o sistema Themis, que gerencia os processos físicos, segue fora do ar.
— Um mandado de intimação para uma audiência de determinado processo, por exemplo, não estamos conseguindo fazer. Notas de expediente, de intimação aos advogados, não estamos conseguindo nesses processos físicos — relata.
Computadores usados na rotina de trabalho dos servidores do cartório precisaram ser resetados.
— Vieram técnicos da informática (do TJRS) liberando algumas máquinas, resetando tudo. Então, tudo aquilo que eu tinha no meu computador interno, eu vou perder. São trabalhos de anos salvos na máquina e que simplesmente a gente vai perder — lamenta o servidor.
GZH conversou com outro servidor, desta vez de uma vara cível do Foro Central de Porto Alegre, que pediu para não ser identificado. Disse que nenhum computador que estava ligado ao sistema do Judiciário no momento do ataque está sendo usado. Máquinas que estavam fora do sistema é que estão em uso neste momento. Conta que a expedição de alvarás, por exemplo, para quem tem valores a receber em ações judiciais está parada. Além disso, não há como dar baixa definitiva em ações. Entre 28 de abril e 10 de maio, segundo ele, tudo ficou parado, sem possibilidade de expedir também ofícios, mandados, entre outros documentos.
Impacto na Polícia Civil
Na Polícia Civil, o problema já foi maior. Com a retomada do e-proc, um dos sistemas do Judiciário também utilizado por policiais, a situação ficou menos pior.
Tudo aquilo que eu tinha no meu computador interno, eu vou perder. São trabalhos de anos salvos na máquina e que simplesmente a gente vai perder
DOUGLAS RÉGIS DE SOUZA
Escrivão
— É um sistema que nós encaminhamos os nossos procedimentos, os inquéritos policiais, nossas representações por prisões, nossos autos de prisão em flagrante ao poder Judiciário. Em verdade, nós não tivemos prejuízo significativo, porque o sistema e-proc nunca deixou de funcionar por um período significativo. Ele teve indisponibilidades momentâneas — ressalta o delegado Antônio Vicente Vargas Nunes, diretor do Departamento de Tecnologia da Informação Policial da Polícia Civil.
Conforme Vicente, o que houve em um primeiro momento, mesmo após a retomada do e-proc, foi um temor dos policiais de utilizar esse sistema e colocar em risco de ataque hacker os sistemas da Polícia Civil.
— De repente a gente segurou alguma coisa que não tinha muita urgência de envio ao Judiciário naqueles dois ou três dias para evitar que, daqui a pouco, a gente também pudesse ser vítima do ataque — relata.
Já esse outro delegado, que trabalha na parte operacional, mas que pediu para não se identificar, traz um outro cenário.
— Pedidos de prisão, operações policiais. Tudo atrasou. Por mais que a gente pudesse encaminhar demandas urgentes por e-mail, não é a mesma coisa. Algumas pessoas que deveriam estar presas, por exemplo, não foram — resume o policial.
Impacto no Ministério Público
Institucionalmente, o Ministério Público se limitou a dizer que foi impactado na atuação judicial apenas pela suspensão dos prazos. Mas GZH ouviu promotores e procuradores que relatam outra situação.
— Pedidos de interceptações telefônicas e telemáticas. Operações represadas. Alguns arquivos (de processos eletrônicos) estão corrompidos, não conseguimos ter acesso – relata esse promotor, que pediu para não se identificar.
Esse outro promotor com quem GZH conversou relata que o ataque foi “tão somente” um agravamento de um quadro que já eram problemático em razão das restrições de atividades da justiça estadual motivada pela pandemia.
— Já estava tudo muito lento – reclama ele.
Já um procurador de justiça com quem a reportagem também conversou relata que algumas demandas mais urgentes precisaram ser resolvidas por e-mail ou até mesmo WhatsApp, fora do sistema. Mas que não houve grande prejuízo ao seu trabalho.
GZH também conversou com magistrados. Um deles disse que somente medidas extremamente urgentes estão sendo apreciadas.
— O juiz não consegue ler o processo para poder tomar uma decisão. Fica complicado. Meu trabalho reduziu uns 40% com esse ataque, porque não tenho como acessar alguns processos — relata esse desembargador.
No que diz respeito à execução penal, segundo o juiz Paulo Augusto Irion, da 1a Vara de Execuções Criminais, não houve tanto prejuízo.
— Nós utilizamos um sistema vinculado ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que é nacional – relata o magistrado, se referindo ao Sistema Eletrônico de Execução Unificado, mas ponderando que ainda não sabe se houve perda de documentos seus salvos na rede do TJ-RS.
Impacto na Defensoria Pública
Em relação ao trabalho da Defensoria Pública, o assessor do defensor público-geral do Estado, Rogério Souza Couto, relata problemas para pedidos de medicamentos, por exemplo.
— O sistema do e-themis, que é o sistema onde tramitam as ações do Juizado Especial da Fazenda Pública, que é onde tramitam ações de medicamentos, onde tem um grande movimento da Defensoria Pública, esse foi severamente afetado. E acarretou grandes prejuízos ao nosso trabalho e aos direitos dos assistidos da instituição – conta o defensor público.
Mesmo com as alternativas disponibilizadas pelo TJ-RS, como o chamado Balcão Virtual, que é uma forma de entrega de petições fora do sistema afetado, e as entregas físicas de pedidos nos foros, alguns problemas persistem.
Como exemplo, Couto cita o caso de um assistido com depressão, transtorno bipolar e síndrome do pânico que parou de receber um medicamento do Estado. Procurada por ele, a Defensoria Pública pediu o restabelecimento do fornecimento ou, como alternativa, o bloqueio de valores das contas do Estado para aquisição pela própria parte.
— A colega juntou todos os documentos que ela tinha pertinentes, e apresentou um pedido na forma alternativa como o próprio Tribunal orientou, por meio do Balcão Virtual. O despacho do juiz veio para nós, dizendo que além daqueles documentos, fornecêssemos para ele a sentença do processo que condenava o Estado a fornecer o medicamento ao assistido, porque o próprio magistrado não tinha esse acesso – conta Couto.
Em nota, o TJ-RS afirma que foram diversas adversidades no período. O desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação Social, destaca “a capacidade de reação e superação de todos: magistrados, servidores e operadores do Direito”. Ele ressalta que em breve a situação voltará ao normal, “com reforço das medidas de segurança que estão sendo adotadas e, por estratégia, não podem ser divulgadas - ao menos por ora”.