A tradicional data de lançamento da Campanha da Fraternidade tem para o Rio Grande do Sul um significado diferente este ano. Nesta Quarta-Feira de Cinzas (26), a Arquidiocese de Porto Alegre se tornou a primeira a instalar oficialmente no Brasil uma comissão para prevenir e apurar com rigor denúncias de abuso sexual na Igreja. Existem outras criadas, mas sem o caráter multidisciplinar que tem o grupo instalado na Capital.
Com isto, casos suspeitos terão que ser apurados em 90 dias e deixam de ser protegidos por sigilo. Qualquer cidadão poderá ter informações sobre denúncias sob investigação. Em situações de assédio, o envolvido fica proibido de atuar com crianças e adolescentes. Se for estupro ou uso de imagens pornográficas, o religioso terá como punição a perda do sacramento.
A instalação da comissão foi anunciada nesta tarde em evento na sede gaúcha da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), durante o lançamento da campanha que em 2020 tem o tema "Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso". A ação, que tem como lema a frase "Viu, sentiu compaixão e cuidou dele", tem foco no compromisso da Igreja com a defesa, proteção, cuidado e resgate da vida.
A Campanha da Fraternidade é realizada anualmente pela Igreja Católica no Brasil sempre no período da quaresma. A cada ano, é escolhido um tema para despertar a solidariedade dos fiéis em relação a um problema concreto.
O presidente da CNBB no Estado e bispo de Caxias do Sul, dom José Gislon, explicou que a campanha visa a mobilizar a sociedade a voltar os olhos para quem vive em estado de abandono.
— A sociedade parece indiferente diante de um quadro de tantas dificuldades e assim se torna mais violenta. É preciso olhar a realidade do outro com os olhos do coração _ disse Dom Gislon.
E neste cenário de proteção também se encaixa a preservação de crianças, de adolescentes e de pessoas vulneráveis que sofreram ou que poderiam se tornar vítimas de abusos sexuais. Depois da solenidade na CNBB, o arcebispo metropolitano, dom Jaime Spengler, assinou em evento na Cúria Metropolitana um decreto canônico criando a Comissão Arquidiocesana Especial de Tutela de Criança, Adolescente e Pessoa Vulnerável.
O grupo, que é coordenado pelo padre Fabiano Schwanck Colares, da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, nasce com o desafio de dar transparência a um assunto que constrange a Igreja há anos e que deixou para trás no mundo centenas de vítimas sem voz. A determinação para a criação de comissões foi do papa Francisco.
— Muito conveniente lançar a comissão quando hoje lançamos a campanha que tem como tema a promoção e o cuidado da vida. Porque às vezes há certa tendência de achar que só falamos para fora e aqui há um viés de olhar para nós internamente, mas sem nos fecharmos em nós mesmos. O trabalho da comissão e da campanha quer ser um trabalho em favor da vida de todos — destacou Dom Jaime.
A diocese de Novo Hamburgo também instalou sua comissão durante missa no final da tarde desta quarta-feira (26).
Objetivos da Campanha da Fraternidade 2020
- Apresentar o sentido de vida proposto por Jesus nos Evangelhos;
- Propor a compaixão, a ternura e o cuidado como exigências fundamentais da vida para relações sociais mais humanas;
- Fortalecer a cultura do encontro, da fraternidade e a revolução do cuidado como caminhos de superação da indiferença e da violência;
- Promover e defender a vida, desde a fecundação até o seu fim natural, rumo à plenitude;
- Despertar as famílias para a beleza do amor que gera continuamente vida nova;
- Preparar os cristãos e as comunidades para anunciar, com o testemunho e as ações de mútuo cuidado, a vida plena do Reino de Deus;
- Criar espaços nas comunidades para que, pelo batismo, pela crisma e pela eucaristia, todos percebam, na fraternidade, a vida como Dom e Compromisso;
- Despertar os jovens para o dom e a beleza da vida, motivando-lhes o engajamento em ações de cuidado mútuo, especialmente de outros jovens em situação de sofrimento e desesperança;
- Valorizar, divulgar e fortalecer as inúmeras iniciativas já existentes em favor da vida;
- Cuidar do planeta, nossa Casa Comum, comprometendo-se com a ecologia integral.
A nova comissão
A Comissão Arquidiocesana Especial de Tutela de Criança, Adolescente e Pessoa Vulnerável é composta por um padre, uma delegada da Polícia Federal (PF), uma procuradora de Justiça e por psicopedagogas, psicólogas, psiquiatras, uma assistente social e um jurista.
O grupo terá como área de atuação as mais de de 160 paróquias que formam a Arquidiocese de Porto Alegre. São 29 municípios, incluindo a Capital, com cerca de 200 padres e 130 outros religiosos (subordinados a congregações).
A criação da comissão é a resposta ao documento Vos Estis Lux Mundi (Vós sois a luz do mundo), carta do papa Francisco lançada em maio. O texto expressa a determinação da comunidade de fé em colaborar no combate ao abuso de poder, consciência e sexual.
Entre as determinações do Papa, está o fim do sigilo. Qualquer cidadão poderá ter informações sobre situações suspeitas que estejam sob investigação. Casos que chegarem ao conhecimento da Igreja serão compartilhados com o Ministério Público (MP) e as polícias. E, em no máximo 30 dias, a situação tem de ser informada à Congregação para Doutrina da Fé, em Roma.
A Igreja fará um procedimento administrativo de apuração que é mais rápido do que o processo canônico. O prazo para conclusão é de 90 dias.
Durante a investigação, o padre sob suspeita será proibido de atuar, sendo afastado do convívio social. O MP tem de ser informado sobre o local em que ele está — a medida coloca fim à sistemática da Igreja de transferir padres suspeitos para atuar em outras comunidades onde, simplesmente, os abusos poderiam se repetir.
A conclusão será julgada pela comissão e ratificada pela Congregação para a Doutrina da Fé no Vaticano. As atas são enviadas ao Papa e ele emite a sentença. Se for provado caso de assédio, o padre fica proibido de trabalhar com crianças e adolescentes. Se for situação de abuso sexual (em qualquer das suas modalidades) ou de uso de imagens pornográficas, o religioso será "demitido", ou seja, perderá o sacramento.
A Igreja também se compromete com ato de reparação: pagará para a vítima tratamento psicológico, psiquiátrico e espiritual.
Integrantes da comissão
- Dom Jaime Spengler (arcebispo metropolitano)
- Padre Fabiano Schwanck Colares (coordenador)
- Padre Carlos José Monteiro Steffen (presidente)
- Irmã Maria Denise Mendes Ternes (secretária, psicóloga)
- Dra. Maria Regina Fay de Azambuja (procuradora de justiça)
- Daniela Moraes Bertoldo (delegada da Polícia Federal)
- Marys Eliane Rezende (advogada e assistente social)
- Berenice Rheinheimer (médica psiquatra infantil)
- Shana Luft Hartz (departamento de vulneráveis da Polícia Civil)
- Ana Cristina Marson (psicopedagoga e orientadora educacional)
Como denunciar
- E-mail: tutela@arquipoa.com
- Telefone: 99733-4957 (ligações ou mensagens de WhatsApp). Funciona entre 7h e 19h.
Não serão aceitas denúncias anônimas, mas o nome do denunciante será preservado. Depois do primeiro contato, a pessoa que fez a denúncia será chamada para entrevista com assistente social