Cobrir o Vaticano não é muito diferente de acompanhar intrigas palacianas do Planalto, da Casa Branca ou do Eliseu. Há divisões internas, tentativas de uso da imprensa para seus próprios interesses, entrevistas coletivas oficiais — com a diferença de que, em Roma, os aspectos teológicos preponderam —, puxadas de tapete, vaidades e lobby. Sem falar na corrupção e no dinheiro. Aliás, o escândalo no Instituto per Opere di Religione (nome oficial do Banco do Vaticano) é apontado como uma das causas da surpreendente renúncia de Bento XVI, em 2013.
Como enviado especial de Zero Hora, acompanhei no Vaticano três momentos marcantes da história recente da Igreja Católica, religião de 1,2 bilhão de fiéis: os funerais de João Paulo II e o conclave que elegeu Joseph Ratzinger, em 2005, e sua renúncia ao trono de São Pedro, oito anos depois, a primeira de um Papa em sete séculos. Por isso, não sou um espectador isento diante de "Dois Papas", filme de Fernando Meirelles, exibido na Netflix. É como se os cenários, falas de Jorge Mario Bergoglio (Jonathan Pryce) e Ratzinger (Anthony Hopkins) completassem um vazio, uma parte desconhecida do que imaginamos que tenha ocorrido entre os conclaves de 2005 e de 2013, enquanto esperávamos a fumaça branca sair da chaminé da Capela Sistina. Ainda que ficcionadas, cenas de cardeais confabulando o voto durante o almoço, Ratzinger em campanha pela eleição e um colégio cardinalício dividido são episódios que, de fato, se fizeram presentes.
A maior dificuldade de se cobrir a Santa Sé em dias históricos como aqueles era saber exatamente o que ocorria intramuros: há os rituais públicos, cheios de mistério, fé e tradição, aos quais assistimos a todos, como o momento em que o camerlengo fecha a porta da Capela Sistina, trancafiando os cardeais lá dentro até que decidam quem será o novo papa. Algumas divergências internas vazam como em qualquer ministério, mas detalhes do que acontece durante o conclave nem os mais bem informados vaticanistas têm condições de bancar como verdadeiros.
O filme de Meirelles é mais inspirador, filosófico e até político do que preocupado com a realidade. Não, os papas Francisco e Bento XVI não assistiram à final da Copa entre Argentina e Alemanha, juntos, pela TV, comendo pizza e tomando Fanta, embora o papa alemão seja, sim, fã do refrigerante e o Pontífice argentino amante de futebol. Liberdades poéticas à parte, os cenários construídos para o filme — a Capela Sistina, sua sala de lágrimas, sacristia onde o Papa, uma vez eleito, veste suas roupas antes de se apresentar ao rebanho, os jardins de Castel Gandolfo, a residência de verão onde Bento XVI se refugiou após a aposentadoria, nos colocam dentro da Santa Sé. São locais onde praticamente nenhum jornalista independente consegue acesso.
Mas são os diálogos o cerne do filme, que explicita o conhecido mas nem sempre admitido embate político entre duas alas da Santa Sé: conservadores e reformistas. Esse duelo, que sempre existiu pelos séculos e séculos, é representado, de um lado, pelo cardeal Ratzinger, braço direito de João Paulo II, todo-poderoso prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), o maior intelectual do colégio cardinalício, homem que ansiava por poder no conclave de 2005, e de outro, pelo cardeal Bergoglio, saído do "fim do mundo", aquele que não queria ser papa, que pregava a reconexão da Igreja com os mais pobres, falava de meio ambiente e de tolerância a homossexuais.
No filme, os três tensos encontros entre os dois, reconstruídos por Meirelles com base no livro de Anthony McCarten e por meio de diálogos criados com frases de suas cartas e suas encíclicas, descortinam um embate teológico, filosófico, mas, sobretudo demasiado humano — até os papas perdem conexão com Deus em algum momento da vida. Bento e Bergoglio divergem sobre praticamente todos os assuntos. Guardião da fé, Ratzinger defende uma Igreja centralizadora, quando, na verdade, segundo o escritor Fréderic Martel, em seu livro No Armário do Vaticano (Editora Objetiva), o cenário era turbulento da Santa Sé, principalmente devido à vida dupla de alguns padres e à homofobia da cúria. O cardeal argentino, ao mesmo tempo em que se mostra estupefato com a decisão de Bento de renunciar — "Cristo não desceu da cruz" —, propõe retorno aos fundamentos do catolicismo e a reforma de ritos, como o perdão ao aborto e eucaristia a casais divorciados.
Em uma breve cena, Bento "confessa" um pecado ao cardeal Bergoglio, de tal maneira que insinua que o Papa alemão sabia sobre o sacerdote mexicano sexualmente abusivo e fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel Degollado, mas não agiu ou esperou muito tempo para agir. O passado na juventude hitlerista de Ratzinger é apenas sugerido. Os holofotes estão direcionados mais às qualidades de Bergoglio do que aos defeitos de Ratzinger — até quase a finalização da obra, o título era apenas "O Papa".
Grande parte de "Dois Papas" é dedicada às lembranças de momentos importantes da vida do cardeal argentino em Buenos Aires, como quando percebeu o chamado ao sacerdócio e aos jesuítas e sua ação — e inação — durante a última ditadura no país vizinho. Aqui, há munição para os dois lados: para quem vê Bergoglio, então superior dos jesuítas na Argentina, como o salvador de "padres terroristas" das garras dos militares, usando de sua influência junto ao almirante Emilio Massera, que cuidava da repressão na infame Esma (Escola Mecánica Militar da Armada). E a quem o observa como um religioso vendido ao sistema, que abandonou subordinados, entregando-os à tortura e morte, como no caso dos jesuítas Franz Jalics e Orlando Yorio.
Prometi, no início deste texto, não ser isento: vi, no filme de Meirelles, autocrítica de Bergoglio em relação ao passado nebuloso. Assim como assisti a um Bento XVI em crise espiritual, um homem que não conseguia, como diz, escutar o "sinal de Deus", e que perdeu o pulso sobre a Cúria Romana.
Os 44 hectares do Vaticano são como microcosmos da sociedade polarizada — do Brasil de bolsonaristas e anti-bolsonaristas, da América Latina nas ruas, dos Estados Unidos da era Trump e do Reino Unido do Brexit. O filme de Meirelles tem o mérito de apontar o diálogo como ferramenta para a construção de pontes. Parece uma obra sobre religião, mas, na verdade, é sobre o exercício da tolerância.