Religiosos de matriz africana usaram as redes sociais para reclamar que foram barrados em um dos mais tradicionais templos católicos de Porto Alegre no último sábado (18). A Igreja do Rosário, no Centro Histórico, teria desautorizado um grupo a realizar parte de um ritual dentro do prédio. Na ocasião, foi apresentada a eles uma carta que deseja boas-vindas "aos membros de religiões afro", que, na sequência, enumera cinco orientações, incluindo a de "nunca deitar e rolar na igreja". Após reunir-se com o arcebispo Dom Jaime Spengler, o presidente da Federação Afro-Umbandista Espiritualista do Rio Grande do Sul (Fauers), Everton Alfonsin, acredita que o impasse foi solucionado.
A discussão foi registrada em vídeo e postada no Facebook no final de semana, recebendo mais de 1,3 mil compartilhamentos. A técnica em segurança do trabalho Juçara Alves, 60 anos, autora do post, defendeu que a atitude da igreja "foi discriminatória e arbitrária". Juçara recebeu comentários de apoio, mas também viu reascender uma polêmica histórica. "Nenhum padre vai incomodar nos terreiros, cada um no seu quadrado", respondeu uma usuária da rede social.
De acordo com o presidente da Fauers, situações semelhantes se repetiram pelo menos duas vezes desde dezembro na Igreja do Rosário. Everton explica que templos católicos são usados por adeptos de religiões de matriz africana durante uma ritualística chamada "passeio", realizada em quatro pontos considerados importantes a sua ancestralidade. Na terceira etapa, o religioso deve ir até uma igreja, fora de horário de missa. A ideia é lembrar as reverências realizadas por escravos no Brasil nos séculos 18 e 19.
— Como eram proibidos de exercer sua religião, os escravos escondiam atrás da imagem de santo católico uma pedra, o okutá, que representava o seu orixá. Era a maneira de cultuar a sua religião dentro de uma igreja cristã — conta.
Em Porto Alegre, o ritual começa no Mercado Público, onde está assentada a pedra do Bará, tem seguimento no Guaíba, no qual são atiradas pétalas de rosa e grãos, e termina com uma refeição na casa de um dos religiosos. Dentro da igreja, parte dos adeptos "bate cabeça" — deita-se junto ao altar e gira para um lado e para o outro, encostando a cabeça no chão. Everton garante que se trata de um ritual silencioso e que os movimentos duram, no máximo, dez segundos.
O Pai Maninho de Ogum Avegã, quem levou 11 pessoas do seu terreiro, em Canoas, à Igreja do Rosário no sábado, afirma que seu grupo não têm o costume de "bater cabeça". De acordo com ele, a confusão começou quando uma senhora impediu, com as mãos, a passagem dos religiosos em direção ao altar, onde pretendiam "pedir o agô" — eles estendem a mão, com o objetivo de pedir licença a Deus:
— Faço esse mesmo ritual há mais de 20 anos, sempre fui bem recebido. Nesse dia, eu fiquei muito surpreso. Essa é uma tradição centenária, faz parte da nossa casa também.
O ritual pode ser celebrado em qualquer igreja, mas a do Rosário é muito procurada em razão da sua história. O templo original foi erguido entre 1817 e 1827 pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, constituída de negros livres e escravos. O prédio foi demolido na década de 1950 e substituído pelo atual.
O presidente da Fauers critica o tratamento recebido pelos religiosos inicialmente na igreja, mas vê como positivo o desfecho da história. As incidências fizeram o líder procurar a Arquidiocese Metropolitana para uma conversa na terça-feira (21) — foi recebido pelo arcebispo Dom Jaime Spengler e pelo bispo auxiliar dom Darley José Kumme. Segundo Everton, os religiosos solicitaram que ele escrevesse em detalhes o ritual para que seja informado às igrejas.
Ele afirma que os grupos seguirão procurando a Igreja do Rosário para fazer parte da ritualística, inclusive realizando o movimento de "bater cabeça", se quiserem.
GaúchaZH contatou a Arquidiocese de Porto Alegre, que responde pela Igreja do Rosário. Questionou como foram os incidentes registrados nas últimas semanas, qual é a posição da igreja sobre a realização de rituais de religiões de matriz africana em templos cristãos e o que foi acordado na reunião com o presidente da Fauers. Por meio de nota, a instituição destacou que "reforça seu respeito pelas distintas tradições religiosas, e valoriza e promove o diálogo inter-religioso". Afirmou ainda que o Santuário Nossa Senhora do Rosário cultiva a tradição de orientar todos os que o frequentam "entregando algumas orientações escritas para que sejam preservados o espaço sagrado, a celebração litúrgica e a sensibilidade dos fiéis católicos que ali se encontram". Conforme a nota, esse papel é entregue na recepção da igreja e está afixado no mural da entrada.
A carta direcionada a religiosos de matriz africana — que não foi localizada pela reportagem na entrada da igreja na tarde desta quinta (23) — tem entre as determinações "nunca deitar e rolar na igreja", "nunca bater sineta" e "não colocar alimentos em cima do altar". A Arquidiocese não esclareceu se a Igreja do Rosário recuou das determinações, mas garantiu que o papel segue exposto no templo.
Confira a nota na íntegra
"A Arquidiocese de Porto Alegre reforça seu respeito pelas distintas tradições religiosas, e valoriza e promove o diálogo inter-religioso.
Como demonstração desta postura e para qualificar as relações, o Santuário Nossa Senhora do Rosário cultiva a tradição de orientar todos os que o frequentam entregando na recepção da igreja — além de estar afixado no mural da entrada — algumas orientações escritas para que sejam preservados o espaço sagrado, a celebração litúrgica e a sensibilidade dos fiéis católicos que ali se encontram.
A Igreja Católica em Porto Alegre é parte ativa do grupo de diálogo inter-religioso na região, cujo o objetivo é fomentar o conhecimento e o respeito recíproco."