Enquanto a espera pelo julgamento criminal da maior tragédia no Rio Grande Sul segue sem data para acabar, a expectativa de familiares das vítimas em receber ao menos reparação financeira também está longe de virar realidade. O incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, completa seis anos neste final de semana sem que nenhum pedido de indenização para sobreviventes ou familiares dos 242 mortos e 623 feridos tenha sido pago. O Tribunal de Justiça (TJ) estima em mais de mil o número de ações cíveis relacionadas ao caso no Estado. Em todos, a sequência de apelações retarda o fim da tramitação.
A soma de processos ultrapassa o total de vítimas porque algumas pessoas propuseram mais de uma ação pelo mesmo fato: contra o município, o Estado, os proprietários da boate ou a banda que provocou o incêndio, explica o desembargador Tulio Martins, vice-presidente do TJ e, ele próprio, um dos que julgam recursos desses casos.
Em alguns casos, familiares de uma mesma vítima entraram em juízo com pedidos separados.
A maior ação foi movida pela Defensoria Pública, em nome de todas as vítimas e familiares dos mortos. É uma das que devem enfrentar mais demora, pelo extenso número de testemunhos e a necessidade de fazer provas. Os réus são os ex-donos da boate. Não há perspectiva de sentença.
Em Santa Maria, cenário da tragédia, tramitam 370 pedidos de indenização. A maioria está na Vara da Fazenda Pública, porque cobram a responsabilização da prefeitura ou do Corpo de Bombeiros, mas também há casos em juizados cíveis variados. O prazo para interessados em mover ações desse tipo se encerrou em 2018, cinco anos após o incêndio. É o tempo para prescrição de processos contra a Fazenda Pública. Nas varas cíveis comuns, o período é menor, de três anos após o fato — a exceção é para pedidos movidos em nome de menores de idade, filhos dos mortos, que só prescrevem quando eles fizerem 18 anos.
Contra poder público, recurso é automático
Além de Santa Maria, local da tragédia, existem processos semelhantes em cidades onde residiam vítimas, como Ijuí, Augusto Pestana, Uruguaiana e São Paulo, entre outras. Pelo menos 20 pedidos de indenização já receberam decisão favorável, em 1ª instância. Como o Código de Processo Civil prevê como automático o recurso em caso de sentença contra União, Estados e municípios, em todos houve apelação. A primeira condenação cível foi em setembro de 2015.
Em vários casos, o TJ já confirmou a condenação de 1º grau, mas tramitam ainda recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Na prática, ninguém recebeu. Além disso, dívidas do poder público resultantes de ações judiciais acima de determinado valor são transformadas em precatórios — um título que dá direito a ressarcimento financeiro, mas que leva anos e até décadas para ser pago. Cada esfera tem suas próprias regras, para o Estado, a conversão ocorre para cobranças acima de 10 salários mínimos (R$ 9,98 mil).
O que desejo é justiça. E uma das formas é os responsáveis pagarem, literalmente, pelo que fizeram. Entre os responsáveis, o poder público, que se omitiu de fiscalizar.
PAI DE JOVEM DE 18 ANOS MORTO NA BOATE KISS
Em menor número, existem processos em que os donos da boate são os réus: a Santo Entretenimento Ltda (nome da empresa que gerenciava a Kiss) e os sócios Elissandro Spohr, o Kiko, Mauro Hoffmann, Angela Aurelia Callegaro e Marlene Teresinha Callegaro. Em alguns casos, eles já foram condenados em 1º e 2º graus, mas recorreram ao STJ. Até agora, as vítimas não viram a cor do dinheiro, enfatiza o advogado Luis Fernando Smaniotto, responsável por mais de 70 pedidos de indenização na Comarca de Santa Maria:
— A empresa responsável pela Kiss nada mais tem. Os dois sócios, Mauro e Kiko, também não. Uma empresa do pai de um deles teria, em tese, patrimônio, mas ainda tramita perícia para verificar se a boate era ligada a ela, já que usava a máquina de cartão e o CNPJ dessa firma. Como tudo isso demora, o dinheiro, se chegar, será em muitos anos. Mas as famílias das vítimas não querem resposta pecuniária. Querem é a responsabilização dos agentes públicos.
"Só os meus netos serão indenizados, e olhe lá"
A maior indenização já determinada no caso da boate Kiss, no total de quase R$ 200 mil, foi para uma família de Augusto Pestana, cidade da região missioneira. O Tribunal de Justiça (TJ) do Estado condenou a prefeitura de Santa Maria a pagar para parentes de um rapaz morto no incêndio R$ 7.535 por danos materiais, pensão mensal de dois terços do salário mínimo, a partir de agosto de 2015, até a data em que o jovem completaria 25 anos (em julho de 2019), e de um terço a partir daí. Foi determinado ainda o pagamento de R$ 78,8 mil para cada um dos pais por danos morais, e R$ 39,4 mil ao irmão da vítima. Foi negada indenização aos avós.
Embora a sentença já tenha sido confirmada em 2º grau, os familiares do rapaz morto nada receberam até agora, porque a prefeitura recorreu, alegando não ser responsável pela tragédia. GaúchaZH conversou com o pai do jovem, que era o orgulho da família, por ter conseguido ingressar na prestigiada UFRGS. O homem, um agricultor de 53 anos, pediu para ter o nome preservado, por ter sido hostilizado após divulgar o pedido de indenização:
— Meu filho tinha 18 anos e alguns meses de vida. Lembro todos os dias dele. Até me sinto mal de falar no assunto. Quando noticiaram que vencemos a ação, fui ofendido de tudo que é forma nas redes sociais. Li coisas que não queria ter visto. Disseram que somos oportunistas, queremos lucro em cima do filho. Nada! Trocava qualquer dinheiro para ter ele de volta.
Diante da demora na tramitação, o pai teme que nem o irmão do rapaz morto chegue a receber a reparação:
— O que desejo é justiça. E uma das formas é os responsáveis pagarem, literalmente, pelo que fizeram. Entre os responsáveis, o poder público, que se omitiu de fiscalizar. Tenho outro filho, também meu orgulho. Talvez ele possa ser beneficiado, mas desconfio que só meus netos serão indenizados, e olhe lá.