Três bombeiros que atuaram em unidades da Grande Porto Alegre são réus na Justiça Militar por suspeita de suborno e corrupção na venda de Planos de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI). Conforme denúncias anexadas aos processos na 1ª Auditoria Militar (primeira instância da Justiça Militar), um major, um tenente e um sargento teriam exigido propina para isentar empresas da necessidade de instalar aparelhos anti-incêndio.
Também teriam forjado documentação para legalizar a situação do PPCI das organizações, conforme apontam o Ministério Público e inquéritos policiais militares (IPM) que integram as ações judiciais, aos quais GaúchaZH teve acesso. Os julgamentos, ainda sem data, serão os primeiros por suposta fraude em PPCI desde o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, em 2013. Desde aquela tragédia, que matou 242 pessoas, surgiram suspeitas de que alguns bombeiros exigiriam propina para aprovar planos ou indicar empresas que viabilizassem o documento. Confira as acusações que pesam contra os réus.
Tenente teria embolsado recursos
Dos três casos que irão a julgamento na Justiça Militar, o mais antigo envolve o 1º tenente Lauro Luiz Henkes, que chefiava o 1º Subgrupamento de Combate a Incêndio, em Guaíba. Ele está denunciado por seis crimes de corrupção, que teriam sido praticados entre 2008 e 2012.
Três dos episódios envolvem cobrança para facilitar trâmites ou aprovar PPCI. O primeiro teria sido um pedido de R$ 35 mil a uma empresa de medicamentos para isentá-la da instalação de sistema automático de extinção de incêndio (sprinklers, conhecidos como chuveirinhos). Em troca, a empresa teria feito a doação de R$ 35 mil para consertar um caminhão-autobomba.
A isenção não foi comunicada ao Comando Regional dos Bombeiros, que deveria autorizar o acordo. A quebra de sigilo bancário constatou que Henkes sacou R$ 12 mil no mesmo dia do depósito feito pela empresa. E, no espaço de 21 dias, outros R$ 12,5 mil, da mesma quantia depositada. A investigação diz não ter encontrado indícios de que o caminhão tenha sido consertado.
Duas outras cobranças envolveriam o PPCI de uma indústria de beneficiamento de celulose, que, em 2010, teria depositado R$ 15,2 mil, em duas etapas, em conta bancária movimentada apenas por Henkes. Seria uma exigência para obter alvará de proteção contra incêndio.
O documento, válido por um ano, dispensou a elaboração de PPCI e foi emitido um mês após o último pagamento. A apuração concluiu que Henkes assinou o alvará sem embasamento legal, “objetivando o recebimento de propina”. Outra indústria, pequena, teria pago R$ 3 mil pelos mesmos benefícios.
Convênio com prefeitura teria situação irregular
Mas a maior parte da suspeitas sobre Henkes não envolve PPCI e, sim, valores doados pela prefeitura de Guaíba para reaparelhamento da unidade dos bombeiros na cidade.
Sem conhecimento do comando regional da corporação, o tenente teria firmado convênios com o município e aberto conta bancária para receber donativos. Era o único a movimentá-la.
Entre 2008 e 2011, a prefeitura local repassou R$ 200 mil e, segundo a investigação, o tenente sacou direto da conta, “como se sua fosse”, R$ 80,8 mil entre 2008 e 2011, “sem comprovação do destino dado a esses valores”. A descoberta ocorreu porque faltaram notas fiscais de prestação de contas do convênio com a prefeitura.
Auditoria da Corregedoria da BM registrou uso indevido de recursos, incluindo despesas com doces, carne para churrasco, conjunto de chá e arranjos de flores, nenhuma delas considerada justificada.
Na reserva desde 2014, o tenente Henkes recebeu salário bruto de R$ 20,3 mil em junho deste ano, conforme o Portal Transparência RS.
Dupla suspeita de receber suborno de empresários
O major Iremar Nogueira Charopen responde na Justiça Militar a duas acusações do Ministério Público (MP) por corrupção passiva, estelionato e falsidade ideológica. Entre os atos atribuídos ao militar, estão a suposta desobrigação de instalar equipamentos anti-incêndio e a venda de PPCI para empresários e proprietários de grandes imóveis que teriam concordado em retribuir com benesses.
Segundo o MP, baseado em dados obtidos via quebra de sigilo bancário, Charopen teria recebido R$ 113,1 mil em propinas a partir de quatro fatos investigados entre 2012 e 2014, época em que esteve à frente de unidades dos bombeiros em Alvorada, Cachoeirinha e Gravataí.
Parte do dinheiro ele teria dividido com o 1º sargento Rogério Hoffmann dos Santos, também denunciado ao TJM, e com um bombeiro civil, que só pode ser acusado na Justiça Comum.
Suposta comissão por indicar prestadora
Em um dos episódios, o major teria liberado o dono de um prédio comercial da instalação de sistema hidráulico de prevenção de incêndio de alto custo.
Para dispensar a exigência e emitir o PPCI, Charopen teria recebido R$ 20 mil na sua própria conta bancária.
A apuração do MP aponta que, no período investigado, teriam sido depositados na conta do oficial R$ 46.955 por empresa de extintores de incêndio. Segundo a denúncia, assinada pelo promotor Luiz Eduardo Azevedo, o major visitaria estabelecimentos de Cachoeirinha na condição de comandante do Corpo de Bombeiros da cidade para “urdir achaques àqueles que necessitavam de PPCI”. Charopen teria o método de indicar a empresa para a regularização de estabelecimentos e, em troca, receberia os valores mencionados na acusação como comissão.
Inquérito policial militar (IPM), que antecedeu a denúncia do MP contra Charopen, apontou ser “plenamente possível concluir a existência de indícios fortíssimos e cabais de prática de crimes de natureza militar e comum, além de prática de transgressão da disciplina”.
As duas denúncias contra o major, uma das quais incluem o sargento Santos, tramitam em fase de instrução na 1º Auditoria Militar. Caso condenados, eles ainda podem recorrer à segunda instância do TJM, em plenário composto por sete juízes.
Atualmente na reserva, major Charopen recebeu, em junho deste ano, remuneração bruta de R$ 28,8 mil. No mesmo mês, o sargento Santos, que ainda é servidor ativo, registrou salário bruto de R$ 9,5 mil.
CONTRAPONTOS
O que diz o major Iremar Nogueira Charopen
A advogada Camila Kersch Rodrigues de Moraes afirma que comprovará a inocência do oficial quanto aos fatos imputados, salientando que possui farta documentação comprobatória de toda sua movimentação financeira, bem como que ele sempre norteou suas ações, enquanto servidor e gestor, com base na ética policial militar, amor ao serviço público, probidade e zelo.
O que diz o sargento Rogério Hoffmann dos Santos
O advogado Márcio Rosano Dias de Souza afirmou que o cliente não irá se manifestar neste momento, mas disse estar convencido de que conseguirá demonstrar a inocência do sargento.
O que diz o tenente Lauro Luiz Henkes
O advogado Fábio Silveira afirmou que o oficial só fala dentro do processo. Salientou que o cliente não foi condenado, apenas denunciado. Em sua defesa na Justiça, o tenente alega o extravio de algumas notas de mercados e que não sabia os valores gastos. Disse desconhecer que convênios com o município só poderiam ser firmados pelo Comando Regional dos Bombeiros. Sobre débitos com a prefeitura, sustentou que o convênio teve as contas aprovadas entre 2008 e 2010, só ficando reprovada em 2011 pela mudança em regras formais.
COMO CORREM OS PROCESSOS
Tramitação
- A Justiça Militar no Rio Grande do Sul funciona em duas instâncias, no mesmo prédio, em Porto Alegre. Os casos de venda de PPCI tramitam na 1ª Auditoria Militar, um dos dois juizados de 1ª instância na Capital.
Julgamento de oficiais
- Para julgar oficiais, há o Conselho Especial de Justiça. O colegiado é composto por um juiz de Direito (não militar) concursado e quatro oficiais da Brigada Militar (BM), sorteados para participar da análise específica do caso, com a condição de que sejam de patente superior à do réu. O civil é o relator do processo. Caberá a ele dar um voto-condutor, atribuindo culpa ou inocência ao acusado. Depois, cada juiz militar segue a decisão do relator ou não. Os votos dos cinco têm pesos iguais e a condenação ou absolvição se dá por maioria simples.
Julgamento de praças
- Para julgar soldados e sargentos, há o Conselho Permanente de Justiça. Também é composto por cinco membros: um juiz de Direito concursado, que preside o colegiado, um oficial superior (major, tenente-coronel ou coronel) e três oficiais (capitães ou tenentes).
Neste caso, os juízes militares são sorteados para atuar por um trimestre em diversos processos simultaneamente.
Recurso
- Em 2ª instância, existe o Tribunal da Justiça Militar (TJM), que julga os recursos tanto dos condenados, em busca de revisão, quanto do Ministério Público, com intenção de elevar pena de sentenciados ou de obter condenação de absolvidos no grau inicial. No TJM, atuam sete juízes: quatro militares e três de Direito, todos efetivos e vitalícios.