Passado mais de um mês do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), postagens nas redes sociais continuam no ar difundindo informações falsas sobre a parlamentar, incluindo criações difamatórias como o envolvimento dela com a facção criminosa Comando Vermelho (CV) e o casamento com o traficante Marcinho VP.
Somente entre perfis de Twitter e Facebook, foi possível detectar pelo menos 30 posts em que as fake news permanecem publicadas. Entre os multiplicadores dos boatos, estão médicos, políticos, empresários, estudantes, aposentados e pessoas que se declaram profissionais de comunicação, desde jornalistas até publicitários.
Marielle foi assassinada a tiros na noite de 14 de março, uma quarta-feira, no Rio de Janeiro, após encerrar um debate com mulheres. Na quinta, o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), monitorou que as manifestações em redes sociais ainda se limitavam a fazer uma correlação entre a morte de Marielle e o discurso de que ela supostamente "defendia bandidos". Também havia intenção de rebater a hipótese de ela ter sido assassinada por milicianos, possibilidade que foi apontada com a mais provável pelo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.
— Já existia uma audiência em torno da desconstrução da imagem de Marielle como militante de direitos humanos. Foi uma tentativa de criar narrativa para minimizar a comoção que as pessoas estavam tendo com o caso dela. Ainda não era baseado em fake news, era uma crítica política que criava uma ambiguidade — avalia Fábio Malini, professor do Labic-Ufes.
Os primeiros tuites difamatórios passaram a ser identificados logo depois das 12h de 16 de março, na sexta-feira. Era o início de uma campanha de fake news que incluiria publicações que seguem ativas.
Um dos casos mapeados por GaúchaZH é o perfil de Leandro Cimino no Twitter. Em sua biografia, ele se define como "analista político e econômico", além de contador e administrador de empresas. Ele também grava vídeos no YouTube. Às 16h03min daquela sexta, publicou no Twitter:
*Quem era Marielle*
- Engravidou aos 16 anos.
- Ex-mulher de Marcinho VP.
- Usuaria (sic) de maconha.
- Eleita pelo Comando Vermelho.
- Foi defender faccao (sic) rival no bairro do Acari no RJ.
- Exonerou 6 funcionarios (sic) recentemente.
_*Mas quem a matou foi a Policia (sic)!!!*_
Conteúdo idêntico ao publicado por Cimino também foi postado no perfil pessoal de "Carlos Augusto" no Twitter — a conta é de um jovem de Santana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul. Não somente o texto é o mesmo: os erros de português se repetem e a configuração da postagem é igual.
A origem deste formato de mensagem não foi detectada, o que reforça a chance de ela ter surgido e se disseminado inicialmente no WhatsApp, aplicativo de caráter privado, onde não se pode rastrear. Depois, passou a ser reproduzida em redes sociais por diversos usuários.
Malini destaca que "no caso da Marielle, foram as pessoas comuns, mais do que os robôs, as responsáveis pelo dimensionamento das fake news. As pessoas queriam mostrar para seus pares que tinham razão em suas crenças sobre a vereadora", relata o pesquisador.
Uma postagem com fake news sobre Marielle que alcançou maior nível de engajamento foi feita no perfil de Miranda Sá, 85 anos, jornalista do Rio. Ele comentou, às 17h13min de 16 de março, uma notícia do portal G1 — "Autoridades e especialistas ressaltam importância de solucionar assassinatos de Marielle Franco e motorista" — com a seguinte frase: "Algum deles lembrou que a morta tinha sido casada com um chefe do tráfico, Marcinho VP?". O post foi retuitado mais de 400 vezes.
O autor do boato logo foi questionado por outro perfil na rede social, que o alertou sobre a falsidade da ligação com Marcinho VP. Miranda Sá se defendeu: "Não conheço o perfil oficial. A informação é de uma desembargadora do Rio. Está na mídia".
A resposta evidencia a forma como pessoas, por vezes, repassam informações falsas, de páginas ou avatares sem credibilidade, por se identificarem com seu conteúdo, seja por afetividade ou ideologia — tese que é defendida pelo pesquisador Malini.
Post de desembargadora
Depois de a mensagem que enumerava acusações falsas contra Marielle ter percorrido as redes sociais a partir do meio-dia de 16 de março, o site Ceticismo Político fez uma postagem no Facebook à noite, após às 22h, que influenciou o crescimento da onda de boatos contra a vereadora. O caso passou a ser um viral. O texto do Ceticismo Político anunciava: "Desembargadora quebra narrativa do PSOL e diz que Marielle se envolvia com bandidos e é 'cadáver comum'".
A base das informações publicadas pelo Ceticismo Político foi retirada de uma reportagem da jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo. O conteúdo do jornal citava as declarações da magistrada Marília Castro Neves (TJ-RJ) — que replicou informações falsas e acusou a vereadora de ter sido eleita pelo Comando Vermelho e "engajada com bandidos". Instantes depois de entrar no ar, a postagem foi replicada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) no Facebook, inclusive com a mesma legenda: "Isso é complicado. Bem complicado...". Depois de mais de 33 mil compartilhamentos, o MBL apagou a postagem.
Com a polêmica e a discussão sobre disseminação de fake news, a rede social retirou do ar o Ceticismo Político e dois perfis em nome de Luciano Ayan e Luciano Henrique Ayan, pseudônimos que administravam a página. O argumento foi de que eles contrariaram as normas.
Médico e ex-vereador em Campo Grande, José Eduardo Cury também reproduziu narrativas falsas. Em postagem no Twitter com 86 compartilhamentos, ele escreveu: "Nada justifica essa morte trágica, mas a trajetória de vida da vereadora foi sempre de risco alto de morte. Marielle é ex-mulher do traficante Marcinho VP, engravidou dele aos 16 anos de idade, e suas bandeiras são distantes dos valores morais e éticos. Que Deus cuide da família".
Um usuário abordou Cury e o questionou diretamente: "De onde tirou essas informações?"
Cury fez a postagem antes de o MBL compartilhar a publicação do Ceticismo Político. Mas, na tréplica ao interlocutor, Cury printou uma tela com a postagem do MBL no Facebook direcionando para o texto do Ceticismo Político, onde a vereadora do PSOL era relacionada a "bandidos".
Contrapontos
O que diz Leandro Cimino:
GaúchaZH ligou diversas vezes e deixou recados, mas não obteve retorno.
O que diz Carlos Augusto:
"Eu pesquisei a fundo e descobri depois, só não tive tempo de apagar, mas como todo mundo já sabe eu até falei no próprio Twitter que era notícia falsa. Porque sempre vale, por mais que tenhas uma notícia na mão, sempre vale procurar depois para saber. Na hora tive aquela indignação e postei. Não apaguei, mas me retratei no próprio Twitter."
O que diz Miranda Sá:
"Me retratei inclusive porque ouvi uma desembargadora, que, aliás, tinha problemas anteriores. Vejo uma desembargadora fazer uma nota, eu acreditei, evidentemente, e um deputado. Infelizmente, ambos enganaram muita gente e eu, inclusive. Geralmente, eu checo o noticiário que divulgo. É lamentável a morte dela, os assassinos devem ser punidos com rigor. Mas ela era uma ilustre desconhecida aqui do Rio e se dizia favelada quando, na realidade, era votada pelos 'burguesotes' da Zona Sul. Em razão desse fato, eu caí na besteira, mas me retratei depois. Acho que cometi um deslize porque, aliás, diga-se de passagem, eu não noticiei o que eles disseram. Dei uma nota perguntando por que não perguntaram sobre o fato de ela ter sido casada com um traficante. Por que nenhum repórter perguntou se ela foi casada? Sem muito comprometimento."
O que diz José Eduardo Cury:
"Esse é um caso que foge da normalidade. Não pode ser analisado como um caso comum, porque envolve uma desembargadora. Na verdade, se um cidadão como eu tiver de checar informação de uma desembargadora, a gente fica realmente receoso, inseguro de acreditar em qualquer coisa. O exemplo da Marielle não serve em função de toda a conotação política que tem em cima. Eu a vejo como uma vereadora atuante como tantos outros do Brasil. Não consigo dar o destaque que estão dando. Tem uma conotação muito forte em cima disso: político-partidária, político-racial, coisas que contaminam o processo. Lamentavelmente, vejo que essa é uma notícia contaminada já na sua origem. Logo que percebi que aconteceu isso, fiquei constrangido, mas eu me senti muito mal, como disse, a fonte continua sendo uma coisa impossível de a gente atuar sem levar em consideração a profissão da pessoa. Sou completamente contra fake news, a gente vai aprendendo a lidar. Tudo isso que está acontecendo, sua própria ligação (de GaúchaZH), vai ajudando a gente a ter mais cuidado. Hoje, tenho muito mais cuidado do que tinha até algum tempo atrás (com informações falsas)."