O início de conversa, por culpa do repórter, começa como uma bola atravessada na frente da área. A pergunta sai "como botafoguenses de quatro gerações moram aqui no Sul?".
— Somos todos gaúchos — responde a voz do outro lado da chamada, com a simpatia de quem plana pelos céus das américas após o título da Libertadores.
A paixão surgida na década de 1950 virou herança para filhos, netos e bisnetos. A estrela solitária brilhou nos ouvidos de Dair Silveira, então um guri do Alegrete. As ondas tortas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro o fizeram se encantar pelos dribles das pernas não menos tornas de Garrincha. Aqueles gols de Mané ecoam até hoje nos Silveira.
Dair Silveira era um piá que adorava o rádio e o futebol. A única estação gaúcha que chegava até ele era a Farroupilha, mas sem irradiar partidas de futebol. A única voz que saia do aparelho em dia de jogo vinha do Rio de Janeiro. O ano era 1953. Diz Seu Dair que em todo Alegrete só ele e mais uma pessoa torciam para o Botafogo.
— Ouvíamos em um rádio maior do que eu. Éramos só dois, mas fazíamos tanto barulho que pareciam 100 mil — relembra o contador aposentado, de 78 anos. Seu irmão virou Fluminense.
O Botafogo deixou de ser abstração e imaginação para Dair somente em 1957. Para comemorar o centenário da cidade, um torneio de futebol foi organizado. Entre os convidados estava o Botafogo, de Garrincha. Só então, viu como o formato das pernas do camisa 7 e seus dribles desafiavam as leis da física.
As voltas que fazem as contas de um contador o fizeram ir e voltar do Rio de Janeiro, com períodos mais lá do que cá até o retorno definitivo na década de 1990. Sandro, um de seus filhos, nasceu em solo gaúcho. Ainda bebê partiu para a capital fluminense. Ivan, filho de Sandro, neto de Dair, não teve a mesma sorte. Ainda jovem veio para o Sul.
— Vivemos uma loucura. Vivi 55 anos esperando. Me sentia culpado por ter filhos botafoguenses. Era pesado. Ainda tivemos três rebaixamentos — confessa o psicólogo Sandro, 55 anos.
O empresário Ivan, 36, não esconde que a herança virou fardo em alguns momentos. Primeiro, era um forasteiro no Rio de Janeiro. A família manteve os costumes gaúchos mesmo longe de casa. A vida se dividia na ida ao CTG local e ao Maracanã.
Quando as raízes foram refincadas em Porto Alegre, era novamente um forasteiro. Um botafoguense em meio a gremistas e colorados. Até na hora do futebol com os colegas era difícil. No Gre-Nal da turma precisava escolher um lado.
— Joguei nos dois lados. Mas me irritava muito. Queria jogar com a camisa do Botafogo. Às vezes, preferia jogar no gol porque podia jogar de preto, para não usar a camisa nem de Inter nem de Grêmio — diz orgulhoso, garantido que não veste o uniforme de nenhum dos dois clubes de Porto Alegre desde o fim da década de 1990.
Paixão compartilhada
Outro peso foi despejado em Bueno Aires. Ivan, Sandro e João Pedro, filho mais novo de Sandro, foram ao Monumental de Nuñez para ver a final da Libertadores contra o Atlético-MG. Foi a primeira vez que João Pedro, 14 anos, assistiu ao time do coração ao vivo.
O título inédito foi para ele o que aquele jogo de 1957, no Alegrete, representou para o seu avô. Um único sentimento separado por 67 anos. Ali entendeu que apesar de serem quase solitários na sua paixão no Rio Grande do Sul, ela é compartilhada por muitos.
— Foi emocionante ir com meus dois filhos. Vi gente com foto de pai, tio, de gente que não está mais aqui. Uma loucura — tenta explicar Sandro.
No domingo (8), um segundo título. Agora, o Brasileiro. Depois da seca, a abundância. A sensação de loucura só aumentou.
— Pareço estar no céu — destaca Ivan, pai de três filhos.
Um deles, Theo, 7, manterá o gene alvinegro vivo entre os Silveira. Ivan garante que o guri manda áudios enlouquecidos quando não estão juntos e o Botafogo vence.
Nesta quarta-feira (11), sentirão nova inquietação. Às 14h, descobrirão o que é jogar o Mundial de Clubes, oficialmente chamado de Copa Intercontinental. Em Doha, no Catar, o Botafogo enfrenta o Pachuca. Se vencer, no sábado (14) tem o Al Ahly, do Egito, na semifinal. Novo triunfo dá direito de enfrentar o Real Madrid dia 18, na final.
É como se todos os 78 anos que os Silveira estão vinculados ao Botafogo sejam vividos em um punhado de dias.