A ascensão dos esportes eletrônicos nos últimos anos gerou um debate: eSports pode ser considerada uma modalidade esportiva? O assunto reacendeu após a ministra do Esporte, Ana Moser, afirmar que não investirá neste segmento em sua pasta no governo, pois não considerada uma prática desportiva. Em entrevista ao portal UOL, ela disse:
— A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. O que você fez foi se divertir, você não praticou esportes. O pessoal treina para fazer. Sim, treina, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é uma atleta da música. O jogo eletrônico não é imprevisível, é desenhado por uma programação digital.
Os conceitos de duas entidades dão pistas para alimentar o dilema. Segundo o dicionário de língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras, a definição da palavra "esporte" é "atividade física desenvolvida por uma pessoa ou por um grupo, com regularidade ou não, com o fim de recreação ou competição". A definição da Confederação Brasileira de eSports é mais direta. "Os jogos virtuais são competições disputadas em games (jogos, na tradução do inglês) eletrônicos em que os jogadores atuam como atletas profissionais de esportes tradicionais e são assistidos por uma audiência presencial e/ou online, através de diversas plataformas de stream online ou TV".
O que define esporte e eSports
Para além dos conceitos, GZH ouviu especialistas na área para compreender, em diferentes aspectos, o que fazem os jogos virtuais serem considerados um esporte ou não.
Para a professora do curso de Educação Física da PUCRS Michelle Guiramand, quando falamos de esportes eletrônicos, é preciso analisar se há exercícios físicos dentro da rotina do profissional:
— Se a questão do exercício físico está envolvida na rotina de treino nos eSports, talvez a gente possa considerar (um esporte). Isso já foi pauta de discussão até do Comitê Olímpico, que aventou a possibilidade de inserir os eSports nos Jogos Olímpicos. Se isso foi debatido é porque existe alguma fundamentação que caracterize como um esporte, mas temos de analisar que, se for só uma prática em que a pessoa não tenha na sua rotina envolvimento com movimento e exercício, a gente precisa repensar esse conceito.
Agenda olímpica?
Para o Dr. Luis Henrique Rolim, professor do Curso de Educação Física da PUCRS e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos (GPEO), o grande ponto está nos aspectos seguidos pelo Comitê Olímpico Internacional para considerar uma prática esportiva ou não.
— O Comitê gostaria de incluir os eSports dentro da agenda de esportes, mas existem alguns aspectos de valores, como por exemplo, a simulação de guerra nos jogos, inadequados a entrar num programa olímpico. Por isso, é aceito aqueles esportes que simulam os tradicionais, como futebol e xadrez, dentro do ambiente online — relatou.
O coordenador do Núcleo de Implantação da Excelência Esportiva e Manutenção da Saúde da UFSM, Luiz Fernando Cuozzo Lemos, compara o desenvolvimento intelectual e cognitivo que assemelha os esportes tradicionais com os virtuais:
— O atleta olímpico que trabalha com tiro esportivo, por exemplo, precisa que, durante a concentração técnica e na precisão para acertar os desafios do tiro, tenha coordenação e concentração. O mesmo é necessário nos jogos eletrônicos.
O COI define os jogos virtuais aptos ao reconhecimento esportivo aqueles que simulam as práticas tradicionais no ambiente digital. Isso não coloca os eSports dentro das Olimpíadas, mas abre espaço para a aparição em jogos paralelos, reconhecidos pela organização.
O COI gostaria de incluir os eSports dentro da agenda de esportes, mas existem alguns aspectos de valores, como a simulação de guerra nos jogos, inadequados a entrar num programa olímpico
DR. LUIS HENRIQUE ROLIM
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos
A Olympic Virtual Series (Jogos Olímpicos Virtuais, na tradução livre) foi o primeiro evento com licença olímpica na história do eSports. Realizado em 2021, a competição teve títulos como eBaseball Powerful Pro 2020 e Gran Turismo entre as disputas. As federações internacionais de futebol (Fifa), basquete (Fiba), tênis (ITF) e Taekwondo (WT) já sinalizaram a vontade de estar na próxima edição e conta com o apoio da entidade organizadora.
Esporte com uma organização social
Para Gabriel Bresque, doutorando em sociologia pela UFPel, o conceito de esporte tem relação com a construção de regras e a delimitação estatal de um grupo. Por isto, tem entendimento parecido com o de Ana Moser.
— O futebol na Inglaterra, por exemplo, teve sua origem como uma organização social, com movimentos do Estado britânico que incentivaram atividades esportivas para comunidades pobres, afim de tirar as crianças das ruas, do crime. Ou seja, pensamos em esporte como uma construção estatal de programas de incentivo à prática, por meio de programas que criem espaço de inclusão cultural. O eSports não tem nada disso, já nasce como uma atividade empresarial — argumenta o sociólogo.
Jogador profissional de Fifa Miguel Bilhar, conhecido como SpiderKong, acredita que, se os jogos eletrônicos fossem mais acessíveis e recebessem maiores incentivos, pessoas com menor poder financeiro poderiam ter mais oportunidades no ramo:
Para os ministérios, a discussão já está fechada. Como conceito, está aberta e podemos pensar sobre ela
GABRIEL BRESQUE
Doutorando em sociologia pela UFPel
— Infelizmente, para você competir, é necessário um alto investimento em aparelhos eletrônicos. É algo que separa grande parte da população brasileira desse sonho (se tornar profissional de eSports). Por isso que o Free Fire foi uma febre tão grande aqui no Brasil, como era um jogo mobile (no celular) que uma grande parte dos celulares roda bem, fez com que o acesso ao jogo fosse mais fácil e se tornasse presente na vida de muitos jovens.
Apesar da vontade dos profissionais e envolvidos no universo dos esportes virtuais, a expectativa quanto a inclusão dos mesmos na pasta ministerial do Esporte está longe de acontecer.
— Para os ministérios, a discussão já está fechada. Como conceito, está aberta e podemos pensar sobre ela — conclui Bresque.
*Produção: Nikolas Mondadori