Os jogadores do Orlando Magic já estavam em quadra para a quinta partida nos playoffs da NBA contra o Milwaukee Bucks quando veio a confirmação de que não haveria jogo naquele 26 de agosto. O boicote era uma forma de protesto após um homem negro ter sido baleado sete vezes pelas costas por um policial branco no interior de Wisconsin, Estado dos Bucks. Mais tarde, outros dois confrontos foram cancelados, e a temporada ficou paralisada por dois dias até ser retomada.
— Estamos pedindo justiça para Jacob Blake e exigindo que os oficiais sejam responsabilizados. Para que isso ocorra, é imperativo que o Legislativo do Estado de Wisconsin se reúna após meses de inação e tome medidas significativas para tratar de questões de responsabilidade policial, brutalidade e reforma da justiça criminal —leu o veterano George Hill, uma das lideranças do elenco do Bucks em comunicado assinado por toda a equipe.
Em cargos de liderança, a representatividade negra na NBA ainda é pequena. Dos 30 donos de franquias, apenas um é negro – justamente Michael Jordan, do Charlotte Hornets. São sete técnicos afro-americanos. A decisão de suspender os jogos, no entanto, foi a mais clara demonstração de força dos atletas na atualidade de uma liga historicamente controlada por proprietários brancos.
Depois do hiato forçado pela pandemia de coronavírus, em 11 de março, o retorno da temporada se deu em meio à mais recente tensão racial vivida pelos Estados Unidos. Com a morte de George Floyd, em maio, jogadores se uniram aos milhões que foram às ruas. Com o país tomado por protestos, a volta da competição só foi definida depois de serem aprovadas algumas exigências impostas pelos elencos.
Algumas delas foram simbólicas, como a pintura de "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam, em português) no centro das três quadras que sediaram os jogos no campus esportivo da Disney, em Orlando. Comissões inteiras se ajoelharam durante a execução do hino nacional americano e uma lista de frases por melhorias sociais foram estampadas nas costas das camisetas vestidas pelos atletas. O avanço mais significativo foi confirmado em agosto, quando os donos das equipes se comprometeram a doar 1 milhão de dólares para iniciativas focadas no desenvolvimento de comunidades negras do país pelos próximos 10 anos, totalizando 300 milhões de dólares no período.
— Estou orgulhoso da nossa liga e de nossos jogadores por seu compromisso com essa luta de longo prazo por igualdade e justiça, e sei que continuaremos a encontrar maneiras de seguir pressionando por mudanças institucionais significativas — afirmou o armador Chris Paul, presidente da Associação Nacional de Jogadores de Basquete (NBPA), à época no Oklahoma City Thunder e hoje no Phoenix Suns.
Para André Salata, professor do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, parte deste engajamento social dos negros na NBA, diferentemente do que ocorre no Brasil e em outas partes do mundo, dá-se pelo forte senso de comunidade criado a partir dos problemas causados pela segregação naquele país.
— Nos Estados Unidos o conflito racial é muito mais marcado, isso gera identidades raciais muito mais fortes, um senso de comunidade mais arraigado. Apesar de a gente ter uma hierarquia racial muito forte em prejuízo dos negros, a marca das relações raciais no Brasil sempre foi a miscigenação. A miscigenação dificulta um pouco esse senso de comunidade, essa identificação com o seu grupo étnico, enquanto nos Estados Unidos as relações raciais sempre se deram a partir da ideia de segregação, o que reforça esses laços étnicos comunitários — afirma.
O impacto desse engajamento foi visto no início de novembro, quando Joe Biden venceu Donald Trump na eleição presidencial norte-americana. Principal nome da NBA dentro de quadra, o astro LeBron James encabeçou a criação da organização More Than a Vote (Mais do Que Um Voto), focada em conscientizar afro-americanos sobre a importância do voto, que não é obrigatório nos EUA. O projeto se uniu a ONGs estaduais para orientar comunidades negras a se registrarem e buscarem seus locais de votação. De acordo com números divulgados no dia 18 de novembro, o More Than a Vote registrou mais de 10 mil voluntários que trabalharam no dia da eleição e pelo menos 100 mil eleitores em arenas esportivas. Ainda que nunca tenha havido campanha nominal de apoio a Biden, a ideia era claramente derrotar Trump, crítico às manifestações dos atletas durante o hino e envolvido em diversas polêmicas raciais durante os quatro anos de governo. Segundo pesquisa da AP VoteCast, 90% do eleitorado negro escolheu o candidato democrata, que assumirá a presidência em janeiro.
Em paralelo, a NBPA conseguiu que 23 equipes abrissem seus ginásios ou centro de treinamentos para receber os votantes, um feito considerado histórico. Chris Paul engajou-se em fazer com que a participação dos jogadores nas urnas também aumentasse. Em agosto, o número de profissionais na liga aptos a votar estava na casa dos 20%. O número passou dos 90% em 4 de outubro, sendo que metade das equipes tinham 100% do elenco registrado.
Ex-jogador de futebol e atualmente comentarista dos canais SporTV, Grafite relaciona o engajamento dos atletas norte-americanos ao modelo usado nos Estados Unidos até se chegar à profissionalização. Por lá, onde não há categorias de base, os jogadores são formados por escolas e, depois, escolhidos por universidades até que sejam selecionados pelos times profissionais.
— Aqui no Brasil, a grande maioria dos jogadores (de futebol) não tem tanto conhecimento da causa, por mais que saibam que o racismo existe e que 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra e 13 de maio é o dia da libertação dos escravos, eles não têm conhecimento afundo da história do racismo. Então, eu até entendo os jogadores não se manifestarem, ou às vezes fazerem de uma forma mais pontual. Hoje eu tenho um conhecimento maior porque procurei saber, ver a história do racismo. Mas vou te dar um exemplo, a NBA e a NFL fazem seus drafts (escolhas de atletas a serem profissionalizados) nas universidades, então os jogadores já estão estudando. A gente sabe que aqui a maioria dos jogadores vêm de famílias humildes e não conseguem conciliar os estudos com a prática do esporte.
Grafite aponta ainda a ausência de negros em cargos de comando no futebol brasileiro, e acredita que os jogadores precisam de apoio das federações para que possam se manifestar.
— A própria CBF não apoia. Quando faz, é por ser pressionada por um clamor nacional, por cobrança da imprensa e da população, mas não tem o conhecimento também. A gente precisa de negros capacitados nesses cargos (de liderança) para que possamos discutir o racismo da melhor forma possível. A gente precisa ter muito mais negros debatendo — aponta.