— Temos de apedrejar menos e ter mais tolerância — pediu na última quarta-feira, dia 21, o presidente do Santos, Orlando Rollo, uma semana após ser pressionado por patrocinadores a suspender o contrato do atacante Robinho, condenado na Itália a nove anos de prisão por estupro, e recém anunciado por um dos mais tradicionais clubes do país .
A frase de Orlando Rollo expõe algo que, na avaliação de especialistas ouvidos por GZH, faz parte da história do futebol brasileiro: a cultura da tolerância.
Para pesquisadores e estudiosos do combate à violência de gênero no esporte, a tendência de dirigentes, com a complacência da torcida e de parte da imprensa, é de dar uma segunda chance nos gramados para atletas envolvidos em crimes contra a mulher.
— O Brasil é um país extremamente punitivista. Quando um condenado da Lava Jato conquista o direito de voltar a trabalhar, a opinião pública se levanta e acha um absurdo. Quando sai a notícia de que a Suzane Von Richthofen (condenada em 2006 pelo assassinato dos pais) vai conseguir algum benefício legal para estudar ou trabalhar, a opinião pública se volta contra ela e também acha um absurdo. A opinião pública brasileira tem uma tendência a negar direitos a pessoas acusadas e condenadas por crimes. Salvo quando estamos falando de jogadores de futebol que tenham praticado crimes contra mulheres. Aí parece que tudo bem que essas pessoas voltem a trabalhar — interpreta a advogada Maíra Zapater, doutora em Direitos Humanos e professora de Direito da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp).
Além de Robinho, que teve o seu contrato com o Santos suspenso por tempo indeterminado, pelo menos outros três casos de jogadores em atividade no Brasil envolvidos em episódios de violência contra a mulher tornaram-se públicos recentemente.
O mais conhecido é o goleiro Bruno, condenado pelo assassinato da namorada Eliza Samudio, em 2010, e que hoje defende o Rio Branco, do Acre. No Atlético-GO, o goleiro Jean, preso em 2019 nos EUA, acusado de agredir a sua esposa com golpes no rosto, segue atuando. E Wesley Pionteck, condenado em todas as instâncias, também em 2019, por agredir a sua esposa com uma faca, continua no Bragantino.
— Não tem como separar o atleta da pessoa condenada por um crime tão grave. O futebol mobiliza uma série de sentimentos de milhares de crianças, e os clubes têm responsabilidade social com isso. A contratação em si acaba de certa forma normatizando a violência sexual, que já é um assunto muito difícil de tratar, pois a nossa sociedade é muito machista — avalia a socióloga Janine Targino da Silva, doutora em Ciências Sociais e professora da Universidade Candido Mendes (Ucam) e pesquisadora sobre gênero e moralidade.
Em todos os casos acima, os atletas envolvidos reivindicaram o direito de serem reintegrados à sociedade, quando terminaram de cumprir a pena, ou à presunção de inocência, quando a condenação ainda não transitou em julgado.
Para a professora Silvana Goellner, pesquisadora sobre gênero e futebol e doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pessoas condenadas por crimes tão graves como estupro, feminicídio e agressão contra a mulher também têm o direito à ressocialização, mas entende que isso não deveria ocorrer em uma profissão que serve de exemplo para tanta gente, como a de jogador de futebol.
— Acho que os clubes e as federações deveriam pensar no ponto de vista ético e no quanto isso contribui para a banalização e a naturalização da violência contra as mulheres. O esporte é um espaço de educação e de produção de valores que inspira muitas pessoas. O futebol deveria mostrar que (a violência contra a mulher) não é qualquer crime. Penso que esses jogadores podem se ressocializar, mas não neste espaço pedagógico. O torcedor pode pensar que, “se o Robinho pode, eu também posso”— opina a pesquisadora .
Sempre que um clube se posiciona, ele está passando uma mensagem. E, quando ele se omite, ele também está passando uma mensagem
MARCELO CARVALHO
Diretor do Observatório de Discriminação Racial no Futebol
Ativista do combate ao racismo no futebol, o diretor do Observatório da Discriminação Racial, Marcelo Carvalho, destaca que os clubes têm o poder de se comunicarem com públicos que as demais instituições normalmente não conseguem atingir e que, por isso, a omissão também pode gerar consequências graves.
— Quando nós realizamos um evento voltado à questão racial, a maioria das pessoas que comparece já é ligada a este tema. Já os clubes de futebol, quando falam sobre racismo, machismo e LGBTfobia, se comunicam com pessoas que não querem falar sobre o tema, mas acabam ouvindo o que é dito. Por isso, costumo dizer que os clubes são verdadeiros veículos de comunicação porque conseguem se comunicar com públicos que os movimentos e o governo não conseguem. Sempre que um clube se posiciona, ele está passando uma mensagem. E, quando ele se omite, ele também está passando uma mensagem. Os clubes têm um papel fundamental na luta contra essas violências — destaca Carvalho.
O Bahia vem ganhando notoriedade nos últimos anos pelo engajamento em causas sociais e pelo envolvimento em ações de combate à discriminação. O ex-diretor de marketing do clube, o gaúcho Jorge Avancini, defende que os clubes devem se posicionar sobre questões sociais.
— Os clubes esportivos têm nas suas torcidas todos os tipos de torcedores e não podem se esquecer de nenhuma dessas pessoas. Os clubes têm que ter responsabilidade social, têm que se posicionar — opina Avancini.
As especialistas no tema ressaltam o papel da mídia no combate à violência contra a mulher no futebol. A pesquisadora Silvana Goellner defende que temas como o assédio nos estádios sejam mais debatidos nos programas esportivos.
— Há ainda uma ideia de que o corpo da mulher é público e que pode se tocar nele sem autorização. O abuso e o assédio são temas sobre os quais ainda pouco ouvimos falar. Precisamos avançar para o futebol ser um espaço seguro para as mulheres, um espaço onde elas estejam protegidas do assédio — destaca Silvana.
Não é o clube que vai ter o papel de mudar a mentalidade da torcida e sim de perceber que essa mentalidade da torcida está sendo modificada
MAÍRA ZAPATER
doutora em Direitos Humanos e professora de Direito da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp)
Já a socióloga Janine Targino da Silva critica a forma como parte da imprensa esportiva tratou o Caso Robinho. Quando a mulher é vítima, analisa Janine, sempre se questiona o que a mulher estava fazendo naquela situação.
— Algumas matérias mencionavam recorrentemente que a vítima tinha consumido bebida alcoólica, que supostamente estava bêbada e que ela teria dito que só iria se aproximar da mesa do Robinho depois que a esposa dele fosse embora. São alguns elementos repetidos com a intenção de desqualificar a vítima e questionar as intenções dela. Penso que alguns nichos da opinião pública a responsabilizam como se ela tivesse provocado a situação — critica.
Apesar de defender que os clubes tenham responsabilidade social ao falar sobre o tema, a advogada Maíra Zapater acredita que dificilmente haverá uma mudança de cultura por iniciativa das instituições esportivas. Para a doutora em Direitos Humanos, em um ambiente de paixões, é mais provável que essa mudança parta dos torcedores, forçando os dirigentes a mudarem as suas condutas. E propõe uma reflexão:
— As pessoas não vão escolher torcer por times que se comprometam a lutar contra a violência contra a mulher. É o inverso. Não é o clube que vai ter o papel de mudar a mentalidade da torcida e sim de perceber que essa mentalidade da torcida está sendo modificada. Os clubes funcionam como empresas, buscam o lucro e estão observando como o seu público pagante, ou seja, a sua torcida, está mudando o seu pensamento. Acho que o caso Robinho está sendo bastante útil para colocar esta discussão em outro patamar.
Espera-se que Maíra esteja certa.
Entenda o caso
O atacante Robinho foi anunciado no último dia 10 pelo Santos, clube onde ostenta o status de ídolo e conquistou dois Campeonatos Brasileiros e uma Copa do Brasil. O atleta teria contrato até o final da temporada, com um salário simbólico de R$ 1,5 mil mensais e mais bônus de até R$ 600 mil dependendo do número de partidas disputadas.
A contratação gerou revolta em parte da torcida do Santos e de outros clubes pelo fato de o jogador ter sido condenado na Itália em 2017, em primeira instância, a nove anos de prisão por violência sexual. Em um primeiro momento, a direção santista alegou que o jogador estava sendo vítima de um “apedrejamento moral” e tinha o direito à presunção de inocência, enquanto recorria da sentença.
Seis dias depois, o site ge.globo publicou a transcrição de diálogos de Robinho com amigos sobre o episódio e que foram usados pela justiça italiana como prova para a condenação. Após a repercussão da reportagem e a pressão de diversos patrocinadores, o Santos decidiu suspender o contrato do atleta por tempo indeterminado.
A defesa do jogador alega que ele “não cometeu o crime do qual é acusado e que sempre se relacionou sexualmente de maneira consentida".